segunda-feira, 11 de novembro de 2013

MIA

Nunca tive animais de estimação na minha infância, ou como se diz hoje em dia "pets". Tive portanto uma infância "petless"... Com 4 filhos em 5 anos, os meus pais devem ter entendido que já existiam demasiados animais à solta na propriedade para ainda adicionarem o que quer que fosse à coleção.
Isso nao quer dizer que não tenha tido contacto de proximidade com várias espécies...

O meu avô volta e meia trazia para casa um saquinho de água com um peixinho vermelho que invariavelmente acabava a nadar em círculos numa taça de vidro algures na cozinha. O mal dos peixinhos vermelhos em taças é que mais dia menos dia acabavam a boiar adornados a bombordo, fosse pela má qualidade da água, fosse por overdose de floquinhos com sabor a camarão. Depois como que cumprindo o seu destino, à água regressavam, fazendo a sua derradeira viagem de regresso ao mar pelo sifão da sanita lá de casa.

Também houve piriquitos. Aliás lembro-me de alguns casais de piriquitos em casa dos meus pais. O problema dos piriquitos é que passávamos o tempo todo à espera que pusessem ovos, e quando finalmente o faziam, ou os atiravam do ninho ou simplesmente os comiam. Qualquer dos cenários era demasiado traumatizante para crianças em idade escolar, e um dia, tal como vieram, os piriquitos, foram-se.

Acho que a primeira relação que estabeleci com um animal foi com o Bolinhas. O Bolinhas era um cão rafeiro branco com manchas castanhas, pelo e pernas curtas, tipo salsicha brasileira. Habitava um armazém de bananas ali para os lados da lapa. O armazém, do qual o meu avô era sócio, fazia paredes meias com uma tasca à antiga portuguesa, com mesas em mármore, bancos de madeira, muita serradura no chão, e grandes pipas de vinho atrás do balcão onde um taberneiro grande e careca envergava um avental tipo talhante com uma toalhinha ao ombro. Comi-se pão com torresmos, pão com chouriço e bebia-se vinho. O meu avô, os seus sócios e demais companheiros passavam horas a jogar dominó, marcando os resultados com um pau de giz nas próprias mesas. O Bolinhas era o meu pet. Eu teria aí uns 8 anos...pegava na trela e ia dar uma volta ao quarteirão, todo orgulhoso, de peito feito, a mostrar para quem quisesse ver que era eu quem levava aquele animal a passear. Um dia cheguei à loja e soube que o Bolinhas fora apanhado por um eléctrico numa das suas saídas habituais sem trela. Desde aí, passaram-se vários anos até que voltei a ter contacto com animais com nome.

Foi no Colégio Militar que voltei a estabelecer algum tipo de vínculo emocional, desta feita com animais de grande porte. Era um belíssimo cavalo chamado "Saturno", castanho, grande, com um galope largo e generoso que me fazia realmente feliz e duas éguas mal cobridas de seu nome "Silvia" e "Rata". A primeira, algo esquizofrénica, tinha surtos psicóticos e quando menos se esperava, largava a formação desatando a correr em sentido contrário aos restantes cavalos, sem que nada ou ninguém a fizesse parar e muitas fezes fazendo o infeliz cavaleiro provar a serradura do picadeiro. A segunda, era pequena, cor de rato, e tinha um trauma sexual, pelo que a simples aproximação de um garanhão pela retaguarda, dava direito a cangochas inopinadas ao estilo rodeo que ficaram célebres pelo número de cavaleiros que levou ao chão. Foi à conta destes três que acabei na escolta a cavalo...

Passaram-se vários anos sem animais e entretanto a personalidade formou-se. Se dividíssemos o mundo em "cat persons" e "dog persons" eu seria certamente uma "dog person". O meu interesse por felinos esgota-se no Jaguar, preferencialmente azul escuro, cabrio, com bancos camel, e nas gatas... louras ou morenas. Paradoxalmente, quis o destino que acabasse com três gatas em casa. Uma, casei com ela, as outras duas são descendência. 

Recentemente, há cerca de dois meses, a nossa vida foi invadida pela Mia. A Mia ao contrário do Bolinhas é uma cadela de marca. É uma Shnauzer, tamanho mini mas sem ser a pilhas e tem pelo preto com madeixas californianas, acho que é assim que se diz, quando o pelo é preto e as pontas são castanhas, mas neste caso é de série. A Mia tem seis meses e nas fotografias aparece sempre como uma mancha negra. Não cheira a cão, praticamente nao se ouve, não deita pelo e nao pedincha à mesa. Tem um olhar carinhoso, e uma cara super patusca, daquelas que só apetece agarrar e já conquistou toda a gente pela sua doçura e simpatia. É uma cadela caseira que está sempre a abanar o rabo de felicidade. Adora enroscar-se no colo de quem quer que seja que esteja a ver televisão e de manhã assim que lhe abrem a porta do terraço corre os quartos à procura dos habitantes para os cumprimentar individualmente pondo-se de pé ou simplesmente saltando para cima das camas e lambendo qualquer cabeça que esteja de fora dos lençóis. É efusiva nas recepções sempre que alguém chega a casa, mas distribui as atenções por todos. Adora correr e derrapar no chão em madeira, fazendo drifting nas curvas. A sua brincadeira preferida é deitar-se de patas para o ar fingindo-se de morta para que lhe façam festas na barriga...Até hoje, eu não sabia que era possível gostar assim de um animal... mas esta, deu-me volta cá com uma pinta... é que só lhe falta falar !


terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mercenary Man - Day 45

Quando estamos fora, o tempo conta-se de maneira diferente.
As rotinas, que no princípio estranhamos, agora entranharam-se. Há novos amigos, novas experiências, novos lugares, novas recordações e não menos importante, abrem-se novas portas. Há um ritmo diferente em tudo o que fazemos... Na própria forma como vivemos.

Entre Sudão do Sul e Kosovo, estou praticamente há três meses fora de casa. Longe da família, dos amigos e dos colegas de sempre. Há três meses que não conduzo e no entanto, provavelmente nunca tive uma rotina tão boa de exercício como agora tenho e nunca tive uma alimentação tão correctamente paleolítica. De uma forma aparentemente paradoxal, apesar do contexto das missões, os níveis de stress caíram para valores de mínimos históricos. Há qualquer coisa neste mundo da ajuda humanitária que nos torna diferentes, e começo a perceber o que é...

Saltei do mais jovem país africano, para o mais jovem pais europeu, e há quase três meses que não sinto o cheiro da maresia ou o sabor dos beijos das minhas mulheres. No campo profissional percebi que para alguns paga-se caro a aventura humanitária, mas para lá dos 40 percebemos que tudo na vida tem um preço. O que fazemos paga-se da mesma forma que tudo aquilo que deixamos de fazer.

Quando estamos em missão... encontramos-nos com nós mesmos ! Sem os tradicionais suportes da nossa estrutura social, estamos fundamentalmente sozinhos. Pensamos muito mais, planeamos, recordamos, meditamos, e quase sempre sem querer pomos toda a nossa vida sobre a mesa, tudo, ali, como se de um qualquer festim se tratasse. Com uma atenção redobrada analisamos cada gesto, cada palavra dita ou não dita, percebendo muitas vezes pela primeira vez a posição e a importância relativa de cada coisa. As certezas tornam-se mais fortes, as dúvidas mais ligeiras, e a nossa visão do mundo ganha outras cores. Perceber o porquê do conflito tribal no Sudão ou a razão de ser da segunda républica Albanesa nos Balcãs, pode não parecer muito importante à primeira vista, mas na realidade, é o mais claro espelho daquilo que somos enquanto humanidade.

Um dia, quando forem mais velhas, espero que as minhas filhas percebam o porquê da ausência do pai durante alguns meses e porquê troquei os seus sorrisos pelos sorrisos de crianças anónimas no meio da selva, uma refeição em família por uma ração de combate à volta da fogueira, porquê dormi em tendas em vez do conforto da nossa casa e porquê troquei a água de colónia pelo repelente para mosquitos e o banho quente pela água do rio, e porquê, tantas, tantas vezes, abdiquei do certo pelo incerto correndo riscos aparentemente desnecessários... Na vida, temos que ser generosos e humildes, tanto quanto possível neutrais, e temos que ser tolerantes para com as diferenças, saber descer ao nível dos que precisam de nós e olhar nos olhos... Elas ainda nao sabem, mas o tempo passa a voar e o tempo para fazermos o que gostamos, para darmos o que de melhor há em nós... inevitavelmente esgota-se. É uma das poucas certezas da vida. 

A poucos dias de regressar a casa, deixo um Kosovo à beira de eleições que podem ou nao correr bem e deixo uma pequena comunidade portuguesa tão especial e acolhedora como são todas as nossas comunidades espalhadas pelo mundo, mas faço-o com um sorriso nos lábios. Levo na bagagem uma ideia que nao me sai da cabeça... há muitas outras crises para além da nossa crise, há muita gente a sofrer para além daquilo que se vê no telejornal, e há um mundo inteiro para lá do nosso rectângulo à beira mar plantado. Agora é tempo de regressar. Quem decide abraçar esta vida sabe que nem sempre ganhamos todas as batalhas, mas felizmente, ganhamos muitas guerras. As nossas ações serão sempre uma gota de água no oceano, mas o oceano é isso mesmo...


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Mercenary Man - Day 6

Life in Kosovo...

Para já uma semana marcada por exercícios de prontidão e pela morte a tiro de um funcionário da Eulex que seguia de carro numa caravana oficial. As vésperas das eleições fazem prever um aumento da violência sectária nesta parte da Europa... Ainda há muitas questões mal resolvidas nos Bálcãs...

Após alguns dias de trabalho e outros tantos de folga, esta cidade começa a revelar-se...
Este pessoal adora os seus carros. Um dos negócios mais florescentes por estas bandas são lavagens automóveis tipo "Elefante Azul", e estão sempre cheios. Em compensação o transito é realmente uma loucura. Há muitas estradas em construção, e os troços vão abrindo à medida que vão ficando prontos... No entanto, por algum motivo que ainda não vislumbrei, os motoristas locais entendem que as regras de transito aplicam-se de forma proporcional à percentagem de asfalto colocado. Conclusão, como a maioria das novas vias estão apenas parcialmente prontas, as regras aplicam-se na mesma medida. Dito isto, é possível fazer rotundas pela esquerda, fazer inversão de marcha no meio de uma via rápida, ou simplesmente circular na contra mão em vias com separador central !!! Tudo nas calmas... Ninguém se incomoda, toda a gente faz o mesmo !!! Verdadeira actividade de risco em Prístina... Atravessar ruas !

Já descobri os Táxis ! São modernos com taxímetros digitais no espelho retrovisor. A bandeirada custa 1,5 euros mas como a cidade é pequena, torna-se possível chegar ao destino quase com o valor da bandeirada... Memórias de Macau vieram-me à memória.
À conta do taxi, esta semana descobri "Film City"... a base americana aqui em Prístina, onde estão estacionadas as tropas da KFOR. Ninguém me consegue explicar o porque deste nome, mas basicamente para os outsiders como eu, trata-se de um sítio giro para passear comer e fazer compras nos diversos "BX" que aqui se chamam "PX", os quais são geridos pelas diversas nacionalidades presentes. Não encontrei nenhuma loja portuguesa, apesar de me ter cruzado com alguns dos nossos homens, mas encontrei a loja, americana, alemã, francesa, escandinava e mais umas quantas polivalentes. Basicamente é possível comprar desde pastilhas, a televisões LCD, passando pelas TShirts e perfumes. Enfim, "It's the american way"...

Estou a dividir o apartamento com um cirurgião Checo e estamos em turnos opostos pelo que só nos encontramos à noite. Somos ambos corredores, mas nao corremos juntos. O amigo tem um metro e noventa e cada passada dele são três minhas, pelo que já deu para perceber que estamos em campeonatos diferentes. Ainda assim, cada um vai descobrindo novos percursos nas franjas da cidade e posteriormente experimentamos os trajectos um do outro.

Cozinhamos à vez de acordo com a vontade e o apetite do dia... Isto obriga a fazer compras nos supermercados locais... O que se tem revelado uma verdadeira aventura. As prateleiras estão cheias e é possível comprar quase tudo nestes supermercados... se conseguirmos encontrar o que queremos !!! Não recomendo os congelados, porque o aspecto é assustador... há peças de carne e peixe completamente ressequidos e nao embalados, constituindo verdadeiros blocos de gelo...Acho que ainda nao descobriram as virtudes da ASAE... De resto, há uma qualquer lógica subjacente a esta arrumação e disposição dos produtos que me transcende completamente... Um exemplo simples... É possível encontrar chá em três corredores diferentes, sal em pelo menos dois, azeite em vários... Portanto lá se vai aquela ideia de que é possível comparar e escolher os vários produtos do mesmo gênero. Depois de colocar o que quer que seja no carrinho, é bem provável, numa qualquer outra secção mais à frente encontrar novamente as alternativas ao que tínhamos escolhido com tanto cuidado. Moral da história, ainda vou descobrir que aquilo está tudo arrumado por ordem alfabética... em albanês !

sábado, 14 de setembro de 2013

Mercenary Man - Day 0

A vida dá muitas voltas, mas não é todos os dias que temos a oportunidade de saltar do mais jovem país africano, para o mais jovem país europeu, no espaço de poucas horas.
O Kosovo, à semelhança do Sudão do Sul, é um daqueles países imaginários que, para a maioria dos portugueses, só existe na televisão e habitualmente não pelas melhores razões.

A primeira coisa que me ocorre dizer depois de aterrar em Prístina, capital do Kosovo, é que Prístina fica na Europa, o que não faz dela automaticamente uma capital europeia no sentido "glamoroso" do termo... mas arrisco a dizer que para lá caminha.

Talvez porque o país é "newborn" tem direito a babysitting por parte da Comunidade Europeia e Nações Unidas. A missão da Comissão Europeia chama-se EULEX, e a da ONU, KFOR. A KFOR conta já desde há bastante tempo com tropas portuguesas que espero ter oportunidade de visitar.

O meu hospital é basicamente um centro de trauma nível 2,montado pela EULEX para servir de suporte a todos os expatriados de todas as forças e missões no terreno. É um hospital em contentores, que não parecem contentores uma vez lá dentro... e é provavelmente um dos mais bem equipados que vi até hoje. De vez em quando também sabe bem trabalhar com o topo de gama !

É minha convicção que a melhor forma de se conhecer uma cidade e perder-se nela. Com esta ideia em mente e depois de avaliar as questões da segurança, entendi que estavam reunidas as condições para tentar perder-me. Segui pela Bill Clinton Boullevard, virei algures à esquerda e dai para frente segui os transeuntes. A esmagadora maioria são Albaneses, uma muito pequena minoria é Sérvia, mas à primeira vista, bem podiam ser Portugueses porque os traços, pelo menos dos homens, são muito parecidos com os nossos. Isto digo eu... que devo ser um típico "mediterranean men", uma vez que aqui falam comigo em Albanês e no Egipto falam comigo em Árabe e em Israel em Hebraico...

Sempre que entendi estar razoavelmente perdido, um qualquer chip que me devem ter implantado à nascença, lá me dava a minha posição relativa e estava outra vez orientado. Acho que tenho cada vez mais dificuldade em perder-me de propósito... Provavelmente porque direita, esquerda, esquerda, quer dizer que segui em frente, esquerda, direita, quer dizer que andei na diagonal, e direita, direita, direita, quer dizer que andei para trás...

Neste processo, encontrei a praça principal, o teatro nacional, crianças a brincar nas fontes, casais a namorar, reformados a ver passar a procissão... Encontrei também a Zara, a Bershka, e a Benneton... Estranhamente nada de McDonalds ou PizzaHut mas devem estar ai a rebentar.

As ruas estão esfaltadas, os passeios um pouco menos cuidados, o parque automóvel é semelhante ao português, talvez com um pouco menos de Mercedes, BMWs e Audis, existe comércio, muito comércio, e muitos modernos cafés, muitos restaurantes e muitas esplanadas, aliás, imensas esplanadas. A (re)construçao está em alta por todo o lado, e alguns espaços públicos começam a ter a sua piada...

Para já, uma conclusão. Prístina fica na Europa !


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 18

Sexta-feira.
Regressámos a Dorain há dois dias. Um dia antes do previsto, porque a equipa que viemos render terminou a sua missão no Sudão. Em Bor deixei doentes recém-operados que me deixam algumas preocupações. Tenho tentado coordenar com o pessoal local o follow-up mas a ligação por satélite tem dias bons e dias maus. Estou a tentar que me enviem por email algumas radiografias, para controle pós-op... Apesar do hospital não ter RX, o contingente Coreano da UNMISS tem radiografia digital, e sempre que posso socorro-me da sua tecnologia.

O regresso correu melhor do que eu esperava. Não há grandes alterações a nível habitacional. Parece que a praga das formigas está parcialmente controlada. Aparentemente, com a fumigação dos ninhos das formigas vermelhas, tornámos as formigas pretas na espécie dominante. Estas são maiores e não passam nos buracos da rede mosquiteira. Criaram-se algumas clareiras à volta do campo. O mato limpo, atrai menos gafanhotos, e consequentemente menos formigas, que os comem como se não houvesse amanhã. Pela primeira vez, vi cobras no acampamento. No primeiro dia, tivemos que nos livrar de duas que estavam a circular junto ás tendas. As trincheiras à volta das tendas, criadas para escorrer a água das chuvas, estão cheias de ovos de sapos... aos milhares... daqui a dia vamos ter girinos. Nem quero imaginar. O barulho dos sapos durante a noite actualmente já é ensurdecedor, obrigando a maioria das pessoas a dormir com tampões nos ouvidos.

No hospital, boas notícias. Os doentes que tinha operado antes de ir para Bor já quase todos tiveram alta. Não deixo de me impressionar com a resistência desta gente, perante condições de esterilização mínimas, e moscas a voar e pousar durante a cirurgia.

Ainda tenho alguns doentes com feridas enormes a granular espantosamente apenas com pensos de açúcar puro !!! E quando cheira a pseudomonas... Penso com vinagre. Estou espantado com os resultados, de tal forma que hoje já programei vários enxertos de pele para segunda feira por forma a dar por terminadas as hostilidades. Uma avó cuja neta, com apenas 8 anos, precisa de múltiplos enxertos na sequência de uma infecção por mordedura de cobra, pediu-me se podia ser ela a doar a pele à criança... Fiquei sem palavras... A miúda é a primeira da minha lista de segunda-feira.

Tenho saudades de correr. Muitas saudades. Há um mês que não corro. Faz-me falta. O corpo pede e acho que como perdi peso, sinto ainda mais a necessidade. Aqui, ora esta demasiado calor, ora está tudo enlameado. Além do mais se começasse a correr o mais provável era ninguém perceber a razão e de repente ia ter não sei quantos Murleys a correr atras de mim. Vou deixar as corridas para o Kosovo... Já daqui a 15 dias. Ja sei que a recuperação vai ser lenta... mas aparentemente vou ter condições... A ver se faço boa figura na São Silvestre deste ano.

De resto, acho que já estou completamente adaptado. Não me faz confusão ir para o duche de galochas. Despir e vestir apenas com um pé no chão. Ter os sapos e os gafanhotos a saltar contra as pernas enquanto estou a ensaboar-me. Encher a tenda de insecticida antes de entrar. Sentir os lagartos sobre a tenda durante a noite. Entrar no bloco, matar tudo o que voa com insecticida, e depois limpar as prateleiras com tudo o que cai morto. Encher-me de repelente ao nascer e ao por do sol... alias a este propósito, já lhe chamam o "ICRC standard perfum" ! Cheiramos todos ao mesmo.

Hoje acordei com os gritos de uma mulher em trabalho de parto. Uma das minhas enfermeiras que é também parteira veio dizer-me que provavelmente teríamos de fazer uma cesariana de emergência. Colo dilatado, 8 cm, não se palpa a cabeça... Bebe aparentemente bem. Optámos por fazer oxitocina. Bem dita oxitocina. Enquanto operava o primeiro da manhã, ouvi o choro do recém nascido por trás da divisória. Uma cesariana nestas condições... enfim. No intervalo da cirurgia fomos ver os dois, mãe e filho. Perguntei pelo nome da criança... "doctor", disse ela, ao que eu questionei "doctor" ?? Resposta da mãe em Murley...iiiii..."doctor nelson" !!! Ganhei o dia.



sábado, 24 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 12

Sábado. De volta a Bor...mas infelizmente vai ser uma curta estadia. Já temos ordem de regresso a Dorain na quarta feira.

Ontem à tarde ainda deu para descansar um pouco numa cama com colchão, num quarto com ar condicionado, depois de um duche numa casa de banho com torneiras. Ao fim do dia, uma pequena "festa" com o pessoal do WFP, deu para matar saudades de uma cerveja fresca e comida não enlatada. Já percebi que tanto quanto possível os expatriados (ExPats) tentam manter rotinas que criam a ilusão de não estarmos perdidos no meio de África.

De manhã cedo fomos passar visita aos doentes internados... 3h para percorrer uma enfermaria com dezenas de doentes. Alguns pensos e mais meia dúzia de cirurgias marcadas para segunda e terça feira. Já olho para esta enfermaria com camas a desfazer-se, sem luz e quase sem paredes, como se fosse a coisa mais natural deste mundo... a adaptação é um processo fantástico. Afinal, ao contrário do que estávamos a prever, não vai haver muito tempo para recuperar de Dorain, antes de voltar para Dorain. Mais uma semana na selva, para pagar os meus pecados.

Logo à noite, parece que há uma festa de despedida de algum pessoal da UNMISS... Prometem barbecue, e eu já estou por tudo. Há que aproveitar enquanto se pode. Se tudo correr bem e não houver emergências, vou tentar dormir um pouco esta tarde e tentar fazer o mínimo amanhã. A semana vai ser de dureza outra vez.

A minha enfermeira de enfermaria diz que eu devo ser "juicy" porque tenho os braços cravejados de picadas de mosquitos e outros afins... Eles lá sabem o que é bom ! Aproveitem porque depois vou-me embora, e não há mais :)

A moral continua em alta e o nosso lema agora, é originário de um filme clássico dos Monty Python - a Vida de Brian. Quando as coisas começam a complicar-se... Abrimos os braços e cantarolamos "Always look on the bright side of life"... http://youtu.be/SJUhlRoBL8M

Este calor está a fazer-me mal à cabeça...

Missionary Man - Day 11

Ontem não houve rendição. As más condições atmosféricas em Bor impediram o helicóptero de levantar. Ganhámos um dia extra na selva.

As formigas amigas das outras da ultima noite perceberam a minha mensagem estilo napalm. Deram-me tréguas esta noite. Mas tive o despertador ligado para garantir uma nova dose de insecticida na tenda a cada duas horas. Dormir assim é no mínimo estranho...

Estamos no pico da estação das chuvas, numa região infestada de malária. Apesar da profilaxia e de todos os cuidados, estes mosquitos fazem-se desentendidos. Após uma semana, é inevitável não levar umas quantas ferroadas. Já perdi a conta, principalmente nas mãos. Tenho fé no Malarone... Mas faz-nos pensar... O período de incubação mínimo são 2 semanas... Pode ser que me safe.

Já na equipa do MSF, esta noite houve uma "baixa"... Febre, cefaleias, náuseas, vómitos, diarreia, artralgias, astenia intensa... só faltava um rótulo na testa a dizer Malária. Iniciámos o tratamento. Vamos evacuar para Juba. Este acampamento é provavelmente um dos piores locais imaginários para viver os primeiros 3 dias da doença. Na minha equipa já quase toda a gente teve malária nos últimos anos. A descrição da minha anestesista é reveladora... "No primeiro dia, tens medo de morrer... ao fim do segundo dia, tens medo de não morrer e continuar assim". Prefiro não saber.

Pequeno almoço tomado. Mochila feita. Aguardamos a chegada da rendição para passar os doente internados... 13 no total... mais uns quantos em ambulatório.

14h. O som do helicóptero ouve-se a quilómetros de distancia. Percebo agora a sensação dos que são resgatados no meio do nada. Ouvir este som a aproximar-se é música para os ouvidos. Já há vários anos que não voava num EC 155 Dauphin, desde os tempo do OST em Plymouth, onde as aterragens eram feitas à noite, em navios em andamento em pleno mar do norte. A grande diferença era que nessa altura envergava um fato de sobrevivência no caso de cairmos à agua, e aqui vou de manga curta :)  Estes pássaros são lindos...

Para trás deixo o meu inestimável instrumentista que agora irá acompanhar a nova equipa, que entretanto chegou desfalcada. Tanto quanto sei, o nosso reforço vem directamente do Canadá e já deve estar em Juba. Amanhã é outra vez dia de cirurgias e quando as equipas são de quatro, uma baixa torna-nos inop.

Já estou outra vez a sonhar com uma cama ou um colchão entre 4 paredes, lençóis, uma casa de banho... Não deixo de me surpreender com as coisas que valorizamos quando estamos no meio do mato... e eu não estou propriamente a regressar à civilização... Estou apenas a regressar a uma "cidade" que não tem ruas asfaltadas nem electricidade nem esgotos nem água canalizada... mas sabe tão bem !!!

Einstein tinha mesmo razão. Tudo na vida é relativo...






quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 10

Os dias já estão de alguma forma rotinados. Cirurgias durante a manha, visita aos doentes internados, pensos, e depois do almoço tentativa de descanso...

Ontem fomos explorar o rio que passa relativamente perto. Meia hora de caminho para lá e um pouco mais no regresso. Pelo caminho, alguns aglomerados de palhotas, pequenas famílias, muitas ossadas de antílopes (guiriguirit na linguagem local), pegadas de hienas (gudul) . Políticas à parte, este povo é simpático, sorridente, e vive a sua vida indiferente ao que se passa no mundo. 

As condições de trabalho continuam difíceis, mas não impossíveis. Começo a admirar a capacidade de adaptação dos seres humanos... e a minha própria por sinal. A prova disso foi o "incidente" da noite passada.

Mantenho com as formigas e restantes insectos uma relação de respeito mutuo... elas não me incomodam, eu não as chateio... Pelo menos era assim...

Ontem deitei-me cedo como de costume. É impressionante como o cansaço acumulado e a ausência de televisão rapidamente nos remetem para os bons hábitos ancestrais. Por volta da meia noite e meia, uma pequena comichão no pescoço, e depois na perna, e depois nos braços e depois na barriga e achei que algo não devia estar bem. Acendi a lanterna e nem quero imaginar a cara que terei feito. As formigas entravam na tenda por todos os orifícios que eu achei não existir. Pelo chão e pelo tecto, circulavam como se de uma auto-estrada de tratasse. Formigas em todo o lado... Caiam do tecto como se estivesse a chover formigas.

Na minha cabeça, em segundos, comecei a equacionar as opções possíveis. Despir-me totalmente, sair da tenda e expor-me aos mosquitos, vestir o que faltava, mesmo com formigas, e enfrentar a guerra com alguma dignidade, incinerar tudo (a minha opção preferida)...

Não levei muito tempo a perceber que a dignidade era importante. A incineração teria efeitos secundários difíceis de prever. Vesti as calças, abri a rede mosquiteira e caíram mais umas centenas de formigas para dentro da tenda, imediatamente comecei a ser atacado em força, agarrei a lanterna, a garrafa de agua, o saco cama, e sai para a rua tentando calçar as botas pelo caminho para não enterrar os pés na lama...

Guerra é guerra ! Sacudi-me durante uns minutos, muitos, e voltei à carga com insecticida em dose mata cavalos. Pelo meio, algumas baixas colaterais de pequenos grilos, moscas, os pequenos sapos cá fora e outros bichos afins...

Fechei a tenda e uma vez que estamos lotados em termos de tendas, optei por arrastar-me para o bloco operatório. A lua cheia ajudou a percorrer os cerca de duzentos metros que separam o acampamento do hospital. Pelo caminho passei na tenda de armazém e levei uma maca. Instalei-me no chão, ao lado da marquesa cirúrgica, com sacos de soro fisiológico a fazer de almofada... E no entretanto começou a chover torrencialmente, o que foi bom para perceber que o bloco não é impermeável. Obviamente a noite foi péssima. Inesquecível, mas péssima.

Pela manha voltei ao acampamento. O caminho agora era de lama, muita lama. A minha tenda parecia um campo de batalha após uma descarga de napalm. Precisava de um banho a serio, mas o caminho para o duche estava completamente enlameado... Portanto fui de toalha e galochas tomar duche... Enquanto a chuva continuava a cair, o que fez-me tomar banho, antes durante e depois do duche, de forma continua. Começo a achar que o convívio com a Ketamina começa a afectar-me. Senti-me em perfeito estado dissociativo... Tipo, isto tudo é uma grande porra... mas eu até não me importo.

Não me deixei abater. A moral esta em alta, provavelmente porque estamos a aguardar o helicóptero que nos vem render, hoje, possivelmente, se o tempo melhorar. Portanto estou a sonhar com uma noite entre paredes de tijolo, se tudo correr bem... Caso contrário... Bem... Ainda não pensei nisso. Pelo sim pelo não vou mudar os lençóis da marquesa cirúrgica...

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 7

Mais uma noite tranquila.
Houve um funeral ao fim da tarde, as hienas perceberam e andaram por ai. Pela manha, um bando de abutres sobre as nossas cabeças... foi assim o dia todo. Cheira-lhes a morte. Tenho que os fotografar um destes dias.

Visita matinal à enfermaria. Algumas decisões clinicas, algumas altas, um penso com anestesia numa criança mordida por uma cobra... Alguns doentes novos para operar amanha de manha.
As mulheres desta etnia, têm desde tenra idade a pele marcada com desenhos fantásticos, padrões geométricos, que tiram partido do facto da pele frequentemente fazer queloides quando arranhada. Na cara, no tórax e no abdómen tenho visto verdadeiras obras de arte. Estamos tão longe desta realidade... e ao mesmo tempo tão perto. Já temos gerador e concentrador de oxigénio, um luxo, que debita 5 litros por minuto ! Ainda não ha ventoinha... portanto opera-se pela fresca.

O dia foi calmo. Choveu torrencialmente. Quando chove assim, nem os doentes aparecem.
Chegou mais um helicóptero. Na carga, a minha segunda dose da vacina contra a raiva. Deve estar a funcionar, porque não sinto raiva nenhuma.

Deu para dormitar um pouco à tarde. Se nos abstrair-mos do ruído da chuva a bater no tecto, torna-se fácil adormecer... e sonhar.

Ao fim do dia, trocam-se experiências de outras paragens. Sou sem duvida o que tem o currículo mais curto. Yemen, Tchad, Cambodja, Mali, Paquistão... a lista é longa, demasiado longa e há tanta gente a precisar... começo a compreender melhor esta tribo dos que andam pelo mundo em enfermarias sem paredes e hospitais que funcionam com geradores. Pergunto pelas famílias, e todos são unanimes, é um trabalho, como outro qualquer, há quem passe mais tempo fora de casa, estando mais perto. O tempo passa de qualquer forma...

domingo, 18 de agosto de 2013

Missionary Man -Day 6

Apercebi-me que hoje é domingo...
A noite não foi má. O calor na tenda, no entanto, torna o sono desconfortável.
Não houve formigas... A fumigação que fizemos ao cair da noite aparentemente resultou.
Adormeci a ouvir as hienas que não deviam andar longe... cheirou-lhes o gado.

Para matar o tempo, ontem à noite, depois do jantar ainda fizemos um intenso jogo de UNO... Intenso porque era um português, um queniano, uma norueguesa, uma chinesa e dois franceses. Quando as baterias acabaram, continuámos o jogo à luz das velas e das luzes frontais. Parecia um grupo de mineiros na batota... A multiculturalidade proporciona momentos verdadeiramente hilariantes e de boa disposição!!!

O dia tem sido calmo. Uma chuvada tropical desde a hora do almoço, com a respectiva trovoada, mantém os doentes afastados do hospital. Ainda assim, acabei de receber uma pequena de dois anos com queimaduras de água a ferver... a vida nestas paragens não é fácil.

Continua a chover torrencialmente. Há quem diga que este acampamento é "way bellow standards"... mas a missão é importante. Estamos numa encruzilhada de caminhos onde converge muita gente, não só por causa da assistência medica, mas também porque este é um dos pontos de distribuição de alimentos do WFP.

Amanhã já há cirurgias programadas. Como a maior parte das intervenções é feita em dois tempos, vou terminar aquilo que a equipa anterior começou, enquanto em Bor, eles devem estar a fazer o mesmo com os doentes que deixámos.

A pouco e pouco, o corpo e o espirito começam a habituar-se...






sábado, 17 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 5

A noite no acampamento foi complicada...
Nada de leões ou hienas, mas por volta das 3 da manha uma dos elementos dos MSF acordou coberto de formigas... e na verdade elas estavam por todo o lado, aparentemente excepto na minha tenda. Acho que o acampamento está montado sob um daqueles enormes ninhos de formigas, e à medida que as estacas foram sendo cravadas no chão elas começaram a emergir.

Fez-se o que se pode para controlar a situação, mas isto é literalmente a selva e como tal esta é uma guerra perdida à partida. De resto, tenho atrás da tenda um qualquer bicho que faz um bip, bip, bip irritante... parece um dispositivo electrónico...mas quando somos vencidos pelo sono, nem o bip, bip incomoda.

Experimentei o duche pela manhã. Basicamente coloca-se um jerrycan de 5 litros sobre uma plataforma, abre-se a torneira, molha-se o corpo, fecha torneira, ensaboar, abre torneira, tira-se o sabão... Há coisas piores, e está tanto calor que a água sabe deliciosamente bem.

Ontem à noite recebemos um doente novo. Uma queda de uma árvore... aparentemente uma das poucas árvores num raio de um quilómetro. Suspeito de uma pequena fractura vertebral, mas fiquei intrigado, pela razão de ser da queda. Então é mais ou menos assim. Estamos a mais de 100 quilómetros da cidade mais próxima, e sem rede de telémovel, pelo menos pensava eu. Aparentemente no alto da árvore que segundo eles tem lá um pau, e que por sinal vê-se, dizia eu que no alto da árvore há rede de telemóvel, e então, para falar com o chefe da tribo, sobem à arvore para ligar. É uma espécie de jungle phone.

O dia foi tranquilo. Estive a suturar a rede mosquiteira da colega que foi formigada durante a noite, para ver se não entram mais formigas. Almoço, ração de combate norueguesa (comida indiana).

O helicóptero do WFP trouxe material que estávamos a aguardar. Sabe sempre bem ver o helicóptero a chegar... ajuda a quebrar a sensação de isolamento.

Choveu torrencialmente uma boa parte do dia. Está tudo enlameado. As condições são duras. Não deu para acabar o projecto do frigorifico, talvez amanhã.

Passámos visita à enfermaria, alguns casos complicados. Estou a aguardar novo helicóptero na segunda com material para poder fazer alguns enxertos de pele e outros procedimentos menos habituais. A equipa tem uma boa moral, não vale a pena refilar, ninguém veio obrigado, ninguém disse que ia ser fácil.

Hoje o principal problema foi mesmo a gestão da energia, porque com chuva o painel solar não carrega a bateria que por sua vez não carrega os equipamentos, ainda assim deu para ver a família :) e é bom saber que estão todos bem.

A noite já caiu. Jantar "pasta" tipo bolonhesa sem carne... é como se estivéssemos a jantar em Roma :) Os mosquitos andam por todo o lado. Voltei à antiga rotina do repelente... Confesso que já tinha saudades do cheiro do repelente... mas estou a desconfiar que estes mosquitos não percebem que isto é repelente... Enfim, amanhã veremos o que nos trás o novo dia !

 




sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 4

Deep down in Africa...
Provavelmente um dos últimos textos made in South Sudan...

Mais um banho daqueles a mendigar por água. Pequeno almoço - feijões :)
Mochila pronta. Partimos para o aeródromo por volta das 8.30
Carregar o helicóptero, e deixamos Bor para trás, lá vamos nós a caminho de Durain... um acampamento no meio da selva, com cerca de 3 semanas de vida. 45 min de voo a 90 knots. A baixa altitude e a janela aberta permitem ver a paisagem... Isto é no fim do mundo, é verdade, mas a paisagem é um espanto. Sobrevoámos algumas aldeias Muley. Ficam umas quantas fotos para a posteridade. Sinto-me como se estivesse num documentário da National Geographic.

Durain é mesmo um acampamento, na verdade, são 3 acampamentos, o nosso, o acampamento do MSF, e um acampamento Muley, uma das tribos que habita a região.
O pessoal do MSF faz a linha da frente, nós tratamos os casos que eles encaminham. A guerra pelo gado tem gerado inúmeros feridos. Temos uma pequena enfermaria com 10 camas e um bloco operatório. Fiz a passagem de turno com a equipa que vai para Bor durante esta semana. Ficam 9 casos, de tudo um pouco, incluído mordeduras de cobra, complicações pós cesariana...

Instalei-me na minha tenda. Estão cerca de 40 graus...

As condições estão a melhorar de semana para semana. Hoje já trouxemos um pequeno gerador a gasolina para poder ligar uma ventoinha no bloco, mas ainda não há ventoinha. O cirurgião que vim render, recomendou-me, antes das cirurgias, encharcar o fato de bloco e vestir o mesmo molhado... caso contrario não ha quem aguente.

As tendas já têm fosso à volta para escoar a água, e têm uma cobertura adicional por causa do calor e da chuva, e hoje sugeri a construção de um "frigorifico" para manter as bebidas frescas. É uma antiga receita Queniana, que aprendi na Indonésia com uma enfermeira que esteve no Mali, vamos ver... em menos de nada já cavaram o buraco que eu encomendei, mais logo vou terminar...
Tambem já temos um painel solar, e "la creme de la creme", a cereja no topo do bolo, Internet via satélite !!!!!!!!!!! Sim... Vou repetir... Internet via Satélite !!!!!!! Não é a toda a hora... Mas funciona.

Já iniciei o programa de aculturação. Estou a aprender algumas palavras em Muley.
Portanto é mais ou menos assim que se inicia uma conversa...

Olá - bona
Resposta - iiiiii 

Como estás ? - bona nina
Resposta - iiiii

Estás mesmo bem ? - bona djuro
Resposta -iiiii

Como estão as crianças ? - bona dália
Resposta - iiiii

Como estão as vacas ? - bona tang
Resposta - iiiiii

E depois invertem-se os papeis e é a vez do outro perguntar ;)
Aparentemente a resposta é sempre iiiiii ou seja, tudo bem :) não vale a pena complicar...

O frigorifico vai avançando... estou a tentar encontrar o carvão... para o revestimento... Nao há muito e o que há, temos que aproveitar para a esterilização... mas amanhã fica completo, já encomendei a um dos artesãos uma tampa em canas, para servir de armação ao cobertor...

Entretanto, o céu cobre-se, a temperatura baixa uns graus... e dai a pouco, uma daquelas cargas de água que deixa tudo enlameado... Great :(

Já temos latrinas... Old fashion, buraco no chão, e uma plataforma, turkish style... é muito, muito mau para quem vem da cidade, e quando o sol vai alto e o calor aperta... bem...mas eu já vinha num processo de degradação das condições ao longo dos ultimos 4 dias portanto nao foi um choque... Foi um choquinho !

Os duches nao são maus... Amanha de manha vou experimentar. Entretanto a decisão é de começar a operar muito, muito cedo, porque a partir das 10h o calor na tenda do bloco / enfermaria é estilo sauna finlandesa... 

Pensar que há pouco mais de 15 dias estava num veleiro no meio do Oceano... Essas imagens de frescura, nao me saem da cabeça...

O sol está praticamente no horizonte... há uma pequena brisa... Acho que vou descansar um pouco. Daqui a pouco acendem-se as fogueiras e os candeeiros de petróleo. Amanhã há mais trabalho... Aliás, o trabalho nunca vai acabar...








quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 3

Após uma noite estranha, com o ar condicionado a fazer o barulho de um helicóptero, a ventoinha do tecto descrevendo elipses e a chuva lá fora a cair como gente grande, acordei bem cedo para um banho de água fria, na verdade, a única disponível... Eu até aguento-me bem à agua fria... mas esta corre lentamente, muito lentamente e sem pressão, por um chuveiro ferrugento... Lembrei-me então dos banhos de balde que tomava na Indonésia, e isto já não parecia tão mau... Pelo menos não tenho que atirar o balde ao poço vezes sem conta até trazer a agua. Já interiorizei a lavagem dos dentes com água de garrafa... é estranho, mas tem que ser.

Pequeno almoço... feijões... e omelete... e uma coisa panada meia doce que não sei o que era, e chá... sem comentários. Já me habituei a fintar as formigas no açucareiro, e as que não finto, vêm beber chá comigo. Neste aspecto, já me deixei de m... ariquices.

Esta tudo completamente enlameado. A caminho do hospital vejo dezenas de pessoas a circular nas ruas, procurando os pontos mais secos, enquanto as crianças chapinham nas poças. As crianças são iguais em todo o lado. Dêem-lhes água, que elas agradecem. Não quero imaginar como terá sido a chuvada nas palhotas...

Hospital. Recebi a minha luz frontal que tanto falta fazia e os óculos de proteção. Pelo menos já consigo ver o fundo das feridas com um pouco mais de claridade e escuso de levar com esguichos de sangue nos olhos... Faz diferença. Operamos os 3 casos programados de ontem, mais um regresso ao bloco para o segundo tempo de uma cirurgia cuja decisão tinha deixado para hoje porque precisava de estudar a melhor opção, mais um baleado desta noite e pelo meio uns pés mordidos por ratos... Indiscritível. 

Estudar é mesmo a única opção em alguns destes casos. A maioria destas lesões, no mundo ocidental seria tratada por equipas de super especialistas de diversas áreas... aqui... sou eu, e hoje, dou graças a Deus pelo tempo que dediquei à cirurgia plástica e à ortopedia... Algumas das técnicas seriam quase impossíveis de realizar sem um mínimo de treino prévio. Provavelmente com o passar do tempo e com a experiência, já não precisarei de recorrer, tanto ás bíblias... não será para já garantidamente... Mas a tecnologia é mesmo incrível, trouxe no ipad uma biblioteca com cerca de 60 livros... Cujo peso total se fossem em papel aproxima-se dos 150 Kg !!! Já para não falar do volume que ocuparia. O trabalho humanitário está a evoluir... felizmente, e por isso mais logo consigo fazer o upload desta crónica... Via satélite :)

Acabámos já perto das 16h... tempo para ir comer qualquer coisa. Optámos pelo "hotel canal"... Chamar hotéis a estes sítios é um pouco abuso... Mas aqui ninguém liga, é um sítio para comer, e a fome é negra. Peixe frito com couve e ukali (basicamente farinha com agua numa argamassa consistente que ganha o sabor do molho que levar por cima)... Imagino que o peixe seja do Nilo... Nem quero pensar se não for...

Pelo caminho de volta, paragem numa mini, mini, mini, mercearia. As coisas que se vendem e encontram por aqui, são incríveis. Comprei Red Bull, Coca-Cola, sumo de goiaba, cereais e pastilhas... 99 ssp ( South Sudanese Pounds) cerca de 30 dólares. É caro, mas logo à noite e amanha de manha vai saber mesmo bem, porque amanha de manha, voamos de helicóptero para Dorein, e por aquilo que me contam... The best is yet to come :)


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 2

Voo de avioneta para Bor, logo de manha cedo. Quatro passageiros mais carga. Voo tranquilo a baixa altitude, 40 min para norte... A selva africana, os pântanos, o Nilo Branco... algumas aldeias perdidas no meio do nada... é impressionante.

O aeroporto, melhor, o aeródromo, mais concretamente a pista de terra batida estava verdadeiramente movimentada entre avionetas e helicópteros de todos os tamanhos (Mi 6 a Mi 26... maior o número maior o tamanho) alguns dos quais só tinha visto na televisão, verdadeiras bestas de carga das várias organizações que estão no terreno. UN, WFP, CICR, MSF, etc, etc...

Se Juba era África profunda, Bor é ainda mais profundo. Não ha estradas alcatroadas, não há electricidade, e água depende...
Deixei as coisas no "hotel". Não consigo bem descrever... ha uma porta com chave e um quarto e uma cama e um mosquiteiro e uma casa de banho e uma ventoinha de tecto... Mas água e electricidade só de manha ou à noite.
Encontrei-me com a minha equipa. Anestesista, Italiana, 50s, algumas tattoos, batida nestas coisas, enfermeiro de bloco, Ugandês e enfermeira de enfermaria, Queniana, ambos já com larga experiência, Paquistão, Congo, Ruanda, Afeganistão...

Decidimos ir ao "hospital" fazer a visita medica aos doentes. O que posso eu dizer ? É como nos filmes, camas sem lençóis, suportes de soros improvisados com canas, tracções esqueléticas em cada esquina, um calor abrasador...

Passaram-me cerca de 10 casos. Desde fracturas da mandíbula com perda de osso até uma criança gravemente queimada, passando por inúmeros baleados em múltiplos locais o ultimo dos quais chegado na noite anterior com uma bala que lhe fracturou o colo do úmero...Decidimos operar 3 hoje  e 3 amanha, mais uns quantos pensos.

Peço para ligarem o gerador do hospital para que se possa por a luz do bloco a funcionar, porque sem luz, uma vez que é um espaço interior, não se vê nada. A minha anestesista a semana passada esteve várias horas a dar ao ambu...

Não consigo decrever o "bloco operatório"... Mas lá fizemos o que tínhamos a fazer com base em muita ketamina, valium, coragem e espirito de sacrifício. Acho que ficaram bem operados. Amanha veremos como evoluem.

Acabamos tarde. À frente do hospital um "bar" chamado "big dad". Teoricamente "seguro" ou seja " diarreia não obrigatoria"... Experimentei o kebab. A fome era tanta que me soube a bife do lombo.

A seguir, reunião com o director do hospital, para articular procedimentos pos-op, nomeadamente as tomas de medicação e apoio ao bloco. 

Amanha, continuamos. Na sexta de manha de partimos de helicóptero para o acampamento de Dorein. O meu pai tinha razão... não há nada de romântico nisto... apenas uma dureza indiscritível, no limiar das condições de trabalho. Ainda estou meio abananado com o dia de hoje.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Missionary Man - Day 0

Para a maioria dos Portugueses, o Sudão do Sul é um pais imaginário que só existe na televisão à hora dos telejornais. Apagada a televisão, vistas as imagens, tudo o que fica é blá, blá, blá, violência, blá, blá, blá, golpe de estado, blá, blá, blá, tiros, blá, blá, blá, tribos... E pronto, é o Sudão do Sul.

Eu próprio não estou convencido da sua existência...

Logo pela manha, auto injectei-me com uma dose simpática de Lovenox (love-nox, amor em versão depot :) uma vez que estando com uma perna a 75% não me apetece nada ser um cirurgião trombo-embólico. 

Aeroporto de Lisboa em modo de introdução dos sistemas de self check-in... cada vez temos menos contacto com as pessoas, e cada vez há mais pessoas a precisar de assistência para lidar com os sistemas que foram introduzidos para reduzir o número de pessoas... Está tudo louco !

Boa noticia do dia. Lisboa - Frankfurt em classe executiva. Imagino que os meus novos patrões tenham adiantado um bónus de primeira missão.
É classe executiva sim sr, mas german style. As hospedeiras são irrepreensíveis na sua função, mas nota-se logo a economia de sorrisos e de presença... falta ali uns genes latinos...

Chegada a Frankfurt, sob chuva.
Para mim, é impossível circular neste aeroporto sem recordar o meu primeiro parto "on the wild" que fiz aqui, a uma matrona Queniana XXL, numa casa de banho, em 2005... mas isso é uma história para outra ocasião.

Ia com intenções de me encontrar com um companheiro, piloto de "outras guerras" que por sinal também estava em transito à mesma hora, mas deixei-me levar por ideias pre-concebidas que amiúde nos induzem em erro. Tendo quase 2 horas de escala, e tendo aterrado no terminal 2, o mesmo da partida, assumi que teria tempo para tudo.
Em primeiro lugar, à medida que circulamos no terminal vamos passando por uma serie de pontos de não retorno, o que imediatamente tornou impossível o nosso encontro. Em segundo lugar, apesar de ser apenas o mesmo terminal, para ir das portas "A" para as portas "C"... nao se vai a pé... Vai-se de comboio ! É outra escala.

Chegado ás portas "C", o meu cérebro já em modo hipoglicemico, assumiu que a minha porta de partida era a C19. Andei, andei, andei, andei até achar que nao havia mais aeroporto para andar, e finalmente chego a um controle de passaportes. Rio ? São Paulo ? Pergunta-me o policia... nao, nao, Addis Ababa, respondo eu assumindo que o meu look estaria algo sul americano... Uma vez que nao sou procurado pela Interpol, e o meu passaporte nao fez disparar nenhum alarme ( tempos houve que o fazia, razao pela qual estive em tempos detido pela Policia Federal no Brasil.... adiante...) ele olhou-me assim meio de lado, e mandou-me seguir. Continuei a andar, afinal ainda havia mais aeroporto, e quando finalmente chego a um local onde nitidamente não havia mais nada, eis que surge um controlo RX. Rio ? São Paulo ? não, não disse eu, Addis Ababa, mas que raio estes hoje a embirrarem que sou da América do sul... Addis Ababa! o policia encolheu os ombros como quem diz, pois, realmente, com essa cor, bem podes ser etíope. Tira cinto, tira relógio, tira telemóvel, tira moedas do bolso, tira ipad, tira o saco com os frasquinhos de 100 ml... Passo sem apitar, mas sempre com o receio que aquela moeda de 2 cêntimos esquecida no bolso, me faça alvo de uma busca das cavidades corporais por um qualquer matulão ariano... Não apitou. Põe cinto, põe relógio, guarda o telemóvel, guarda as moedas, arruma o ipad e o saquinho dos frascos...
Andei 10 metros e agora controle de cartões de embarque... Caro Sr, o sr está no sítio errado. A sua porta é a C09. What ? Sim, sim, C09, tem que andar para trás... olhei para o relógio e já não havia muito tempo. Desatei a andar em modo "coxo com pressa" que é o melhor que nesta altura ainda consigo fazer... Andei, andei, andei... E andei cerca de 1km ou para ser mais exacto, 20 min em modo coxo, coxo com pressa.
Novo controle de passaporte, novo rx, tira cinto, tira relógio, tira telemóvel, tira moedas do bolso, tira ipad, tira o saco com os frasquinhos de 100 ml... Passo sem apitar, ainda não foi desta a busca das cavidades, põe cinto, põe relógio, guarda o telemóvel, guarda as moedas, arruma o ipad e o saquinho dos frascos... Uff, finalmente no avião e uma dupla estreia: Boeing 787 Dream Liner, e Ethiopian Airways... Pois...

Lá me instalei na minha cadeirinha, com as costas muito direitinhas, muito pertinho do banco da frente... Apesar do avião ser grande, na classe económica é tudo mini. Obviamente trata-se se uma clara provocação estilo mete nojo, fazem-nos entrar junto à primeira classe, que é para vermos onde não vamos dormir ! Aquilo irritou-me ! Ainda para mais, porque tinha acabado de passar por um placar publicitário da Singapore Airways, onde anunciavam a nova classe Suite Executive ! Com cama de casal e lençóis ! O mundo não é um local justo... e nunca, nunca o será !


Missionary Man - Day 1

5366 kms depois, eis que aterramos em Addis Ababa. Tirando a dor no pescoço pela posição viciosa, e as pernas hiper inchadas, o avião é de facto um espanto... e muito silencioso. Continua a espantar-me a precisão destes aparelhos. A duração prevista do voo era de 6h e 6min, fizemos 6h e 7min.

Chuva em Addis Ababa, e um terminal de aeroporto digo de um filme. Mantenho a minha opinião que os aeroportos dizem muito sobre os países, e este não era excepção. As lâmpadas fluorescentes sem balaustres, um bar / cozinha aberta onde as duas opções de bebida são, Coca-Cola em garrafa de vidro com carica oxidada ou água... E quanto ao preço, depende do que temos... Se for dólares é um dólar, se for euros, é um euro !

Assim que pude tomei posse de uma cadeira que dava para esticar as pernas. Eram poucas e como tal a esta não mais a larguei. Foram 5 horas dolorosas. Ia passando pelas brasas no meio da multidão, treino adquirido nas urgências, mas de vez em quando acordava com uma corrente de ar que me fez lembrar que não tinha posto nenhum polar na mochila. A este respeito devo dizer que a experiência levou-me a assumir que iria perder a bagagem do porão, porque sim, ouve tempos em que isso era uma constante, e como tal preparei a mochila para 5 dias de autonomia de roupa, comida e higiene pessoal... 

Voo para Juba, num bimotor Q400. Pelo caminho conversa com um americano que anda cá e lá...
Nada me preparou para o choque de Juba. Saída do avião, e sigo aqueles que parecem saber para onde se dirigem. Era uma barracão (não em sentido figurado) onde estava uma centena de pessoas, acotovelando-se para pagar o visto, controle de passaporte e recolher as bagagens que eram lançadas por uma janela para uma pilha enorme no meio da sala... Indiscritivelmente África profunda.

Optei por não ligar à bagagem (não iria chegar de qualquer maneira) e fui para a fila do passaporte, quando finalmente chegou a minha vez... Estava na fila errada, era preciso primeiro pagar. Fui para a fila dos pagamentos. Conheci uma alemã e um brasileiro que trabalham para os MSF, e aparentemente vamos estar juntos algures no mato... chega a minha hora de pagar e as minhas notas de 50 dólares, tinham uma pequena mancha em um dos cantos motivo pelo qual não eram aceites... Inacreditável... lá me safou o brasileiro que trocou-me o dinheiro por uma nota aceitável.

Escusado será dizer, que quando isto terminou cerca de 1 hora depois, eu era o único passageiro do terminal... E olhando para trás, vejo a minha mala ali sozinha, à minha espera. Moral da história, aqui é tudo com calma... Muita calma.

Cá fora, já o motorista me esperava para levar-me à delegação. 5 briefings e uma vacina contra a raiva depois, eis-me no Rainbow Hotel, a jantar e pernoitar num quarto com mosquiteiro antes de amanha seguir cedo de avioneta para Bor...sim... porque é a época das chuvas e as estradas estão intransitáveis e não ha nenhum cirurgiao na cidade desde há 4 dias.
Os meus companheiros dos próximos dias são das tribos Dinka, Nuer e Murle... Que se guerreiam por causa do gado...Daqui a 8 dias, helicóptero para Dorein, no meio da selva, onde as preocupações de acordo com o briefing são os leões as hienas e as formigas... Enfim...




quinta-feira, 25 de julho de 2013

Terra à vista - diário de uma travessia atlântica

Dia 1
Ainda estou a pensar se vou ou não fazer um mini diário de vida a bordo... O meu pai sempre recomendou que o fizesse, mas nunca o fiz. Talvez seja desta...
De Lisboa aos Açores / Ilha de Santa Maria
Largada da BNL pelas 11h - sábado dia 20 de Julho
Pano em cima para sair a barra bonito :)
Passagem pelo Bugio, e pela porta de casa para dizer adeus !
A ondulação do costume assim que se entra no mar alto... e pouco depois, os cadetes estão na alheta a pagar a noitada da véspera... Consta que o Rei Greg os chamou à borda, e, à vez, lá vão fazendo as "suas oferendas"...
Almoço, arroz de pato... Made in Base Naval, e que bem que soube... Soube a pato !
Tarde para afinar procedimentos e por a conversa em dia... Rumo definido. Aproveitei e pus também o sono em dia, era preciso testar a cama e perceber se estava pronta para a viagem ;) parece que sim, adoro este balanço.
Jantar, bifanas e salada. Healthy food !
Banho a sério só daqui a 6 dias... é preciso gerir a água doce.


Dia 2 - Domingo, 21 de Julho
Estamos divididos em Quartos de 4 horas... Alguém tem que estar acordado e atento ao que se passa lá fora. 
Quarto das 04h ás 08h. Noite escura. Quando o despertador tocou nem queria acreditar que já eram 04h...
Quatro horas a olhar para o tráfego, a navegação, o radar, o leme...
Céu nublado, vento caiu, mar acalmou, amanhecer cinzento
Pequeno almoço - sandes queijo fresco, um pêssego, taça de cereais
Ainda pensei voltar para a cama no final do Quarto, mas entretanto avistámos uma bóia laranja no meio do nada... Seria droga ?! Quando uma bóia no meio do oceano tem a seguinte inscrição: "virgem branca"... a primeira coisa que vem à cabeça é coca, o que atendendo ao histórico deste barco, nao seria nada de estranhar.
Pescámos a bóia com o croque, mas  acabámos com o cabo enrolado no hélice. Motores parados. O Comandante Rui, já a sentir falta de um banho... Voluntariou-se para o mergulho. Cabo desenrolado em 3 tempos.
Lavar os dentes e dormir que o corpo já pedia cama.
12.30 Lavar a cara mudar tshirt, banho dodot e pó de talco.
Quarto das 13h ás 15h
Almoço e música sempre a bombar... Estou fã deste regae e das colunas no exterior.
Tentamos por o pano todo em cima... Genoa, estai, grande e mezena... Dá uma bela foto, mas o vento rodou e caiu... Agora anda pelos 2 nós... 
Desvio da rota para bombordo para acompanhar o grupo que seguiu para Sul com o vento de ontem.
Grupo de baleias piloto a estibordo em rumo cruzado
Ainda ás voltas com as afinaçoes do radar para tentar encontrar as outras embarcações... por entre o ruído do mar...
22 graus... tempo de Açores
Prego no prato com salada para o jantar, nao sem antes abocanhar umas bruchetas pomodoro...
Por do sol regado a whisky e cajus... Muito bom !
Quarto das 21h ás 24h
Contacto visual com o farol de popa do Veleiro Força III
Mar de estanho. Lindo e indiscritível. Um ponto a cima do "mar de azeite".


Dia 3 - Segunda - 22 de Julho
Panquecas com açúcar e canela para abrir as hostilidades ao pequeno almoço. É o que vale ter uma cadete prendada a bordo. 1 copo de leite, 1 copo de farinha, 1 ovo... Done !!! Mnham mnham...
Hoje iniciámos nova rotação de quartos de 4 horas entre o comandante, o imediato e a minha pessoa.
Os cadetes tb se dividiram e acompanham-nos em grupos de 2
Quarto das 8h ás 12h - o meu primeiro do dia.
O céu começou encoberto mas com promessas de ir abrindo... O que de facto aconteceu.
Contacto radio com Força III e Azul III estão bem e relativamente perto, a cerca de 10 milhas
Contacto ComNav via satélite. Actualização metereológica. Vento norte - noroeste 2-6 nós ao fim da tarde... Aviso os veleiros para rumar para norte, nao vai haver vento Sul.
Golfinhos a bombordo, um grupo grande que passa ao largo.
A bomba do esgoto avariou... Pequena inundação nos wc.
Reparação da bomba. Este Sargento Sousa só nao arranja o que nao tem concerto.
Depois da lavagem forçada da roupa atingida pela inundaçao do esgoto...Os cadetes continuam a tentar acertar com a receita da sangria tinta. Parece que desta vez acertaram :) ou evaporou ou longo do dia, ou alguém a bebeu...
A ondulação é espantosa... 1 a 2 metros... Larga... Quase hipnótica...
Almoço, esparguete à lá Blaus ( basicamente tomatada e um pouco de tudo )
Os golfinhos finalmente perderam o medo. Um grupo simpático veio brincar à proa :)
O vento está de Sudoeste 15 nós, pomos todo o pano em cima. Genoa, Estai, Grande e Mezena (que segundo o Rui só serve para embelezar)... Afinal a meteorologia não deu uma para a caixa.
À tarde... tempo para um pouco de exercício... Abdominais e halteres... e 1 hora de ronha ao sol !!!
As pernas já pedem corrida... Mas vão ter de esperar por Santa Maria.
A música tem estado incrível o dia todo. Anos 80 e depois UK TOP 40... Parecia o B Beach !
37.53.50 N 15.49.60 W - Águas internacionais - recolher as velas - paragem para banho de mar :) Aparentemente ficámos a pairar num sitio onde não tenho pé...profundidade... 3.500 metros, agua quente e cristalina. O corpo já pedia água fresca (salgada) e gel de banho ! No final, uma mangueirada de água doce para remover o sal. A moral está em alta ! Hoje nem houve tempo para a sesta...
Lanchinho - melão com presunto, queijo fresco, e a rematar uns cajus regados a Jameson.
Para jantar, deitei mãos à obra e produzimos uma salada de coisas do mar tipo atum e outras delicias com molho thousand islands feito na hora.
Mais um fantástico por do sol, destes que só se vê em mar alto.
Lua cheia fabulosa. Vento 0. Vamos a motor a fazer contas se dá para ir aos ilhéus das formigas... parece que sim, o que significa que depois das desertas e das selvagens, fica completo o meu passaporte de ilhas desabitadas !
Quarto das 20h ás 24h... O último do dia.
Os cadetes continuam a saga dos filmes "de acção"...
Vénus a oeste é a única luz no horizonte. Segundo o radar, estamos sózinhos no meio do mar...


Dia 4 - Terça, 23 de Julho
Quarto das 08h ás 12h
Céu pouco nublado. A ondulação aumentou significativamente e o vento também, agora de sudoeste 15 nós. Infelizmente, temos a frota muito dispersa. Estamos a tentar manter-nos ao centro mas a rumar ligeiramente para sul onde se encontra o veleiro Força III... Para tal, temos que fazer um rumo 260 que nos coloca praticamente aproados ao vento :( Ainda tentei o estai, mas este barco não é um bolineiro e com a ondulação a vela estava sempre a bater... Portanto vai a grande em cima para não dizerem que não usamos as velas.
Ainda não perdemos a intenção de um mergulho no recife do Dollabarat, junto ás Formigas, vamos ver se o tempo ajuda e se as jamantas passam por lá :)
Em equipa vencedora não se mexe, e como tal, panquecas para o pequeno almoço, again :)
Até o imediato que tinha caído na cama ás 04h, levantou-se em modo zombie nao fosse alguém esquecer-se de guardar umas tantas.
Faina da louça suja... Com água salgada. Os pratos ficam naturalmente temperados :)
Neste Quarto, sou Skipper e DJ, portanto os mais novos vão revendo alguns dos clássicos pop rock da minha geração à mistura com os hits do momento. A educação não tem hora nem local.
Já começa a ser hábito, mais quatro horas sem nenhum contacto visível. Estamos sozinhos neste mar imenso !
A ondulação está a pedir brincadeira na proa... O efeito montanha russa é espectacular. Mais umas quantas fotos para mais tarde recordar.
Almoço, pizzas de vários sabores.
Hoje vou fazer a sesta :) ... Check !
Cereais e yougurt para o lanche.
O céu encobriu, a temperatura arrefeceu, o mar está malagueiro... lá vamos nós a levar pancada outra vez.
Jantar, prego no prato com salada... e o céu abriu apenas para proporcionar mais um por do sol fantástico.
Quarto das 20h ás 24h
Contas refeitas para chegar a Dollabarat daqui a 60 horas... Se tudo correr bem e não houver contra tempos... Já só temos contacto com 2 dois dos veleiros da frota... um em VHF (no limite) e um por satélite...Mas como diz o ditado, "no news is good news"...
O radar continua com zero contactos num raio de 24 milhas...
Sessão de cinema, "gato preto, gato branco". Umas boas gargalhadas antes de terminar o Quarto.


Dia 5 - Quarta, 24 de Julho
Mais uma noite no balanço da ondulação. Vou sentir falta disto.
Quarto das 08h ás 12h
Já tenho a playlist a bombar boa música na ponte e à ré. Apesar da música ser boa há pessoal que precisa dormir... Felizmente o sistema de som permite excluir a música no salote.
Céu limpo por cima de nós e encoberto a toda a volta. Parece o olho do furacão.
Contacto visual com o Azul III cerca de 6 milhas à nossa ré. Vamos reduzir a velocidade para deixar que nos alcance.
Alteração do planeamento. Decidiu-se rumar directamente ao recife de Dollabarat (cerca de 30 milhas a nordeste de Santa Maria) para um mergulho na natureza selvagem. Pelas nossas contas devemos chegar lá na manhã de 26 para depois atracar no Porto de Santa Maria ao final da tarde.
Já ninguém sabe em que dia da semana estamos, sem primeiro fazer contas com os dedos. É uma sensação formidável !
Faina da louça suja, com água do mar.
Ainda não vi o meu cachalote... Mas já pus a cabeça a prémio e pago um jantar ao primeiro que o avistar. Baleias piloto não contam.
Almoço - Lasanha com legumes salteados :)
Tarde de ronha ao sol... O vento rodou para norte, agora com cerca de 15 nós, pomos o pano todo no ar ( menos a mezena que segundo o Rui só serve para embelezar) e estamos a navegar a 7 nós, o que nao é nada mau atendendo a que são 45 toneladas... peso sem cadetes.
Temos o Azul III a cerca de uma milha pelo través de estibordo. Máquina parada e ensaiamos 2 bordos... Iça Estai, recolhe Genoa, virar de bordo, desenrola Genoa, recolhe Estai... 7 minutos à primeira tentativa, 4 minutos à segunda, com o motor a ajudar na viragem. Esta barcoita não é regateira... é para se fazer com calma...
Os cadetes repetiram a receita da sangria com alguns melhoramentos... Nao ficou nada para a posteridade.
Depois de tostar ao sol, tempo para um pouco de halteres em equilíbrio instável... deu para suar.
Banho de água salgada a baldes, gel de banho, e mangueirada de agua doce para rematar.
Tostas de queijo e óregãos para o lanche...
Final de tarde no sítio do costume (à proa, sobre o grupés)...  Nao consigo fartar-me deste efeito montanha russa... deste mar... deste por do sol...
Mais golfinhos a bombordo... rodeando um cardume de qq coisa... estão claramente à caça, nem ligam à nossa passagem.
O vento agora está pelo través... Navegamos a 7 nós sem motor.
Jantar - prego no prato com salada.
A esta velocidade, vamos chegar a Santa Maria amanhã ao fim do dia... Logo se decide em relação ao Dollabarat...
Quarto das 20h ás 24h
Estava tudo a correr bem... Por questões de segurança resolvemos recolher a Genoa para a navegação nocturna. A ideia era subir o Estai, e dar um toque de motor para nao baixar dos 7 nós...
Pelas 21h, cheiro a queimado, fumo, e alarmes a tocar. Pára a maquina, acorda-se o Sousa, e em 5 minutos estava feito o diagnóstico..."o rotter queimou"... pondo em risco o sistema de arrefecimento do motor... Recolher o Estai, desenrola-se a Genoa, afina-se a Grande, e estamos de volta aos 7 nós, enquanto o Sarg Sousa substitui o rotter por um novo (quem vai ao mar, avia-se em terra).
Sessão da noite - "O Padrinho"
A ver se chegamos a horas decentes a Santa Maria... será a diferença entre atracar no Porto, ou ficar fundeados ao largo... A diferença entre um jantarínho típico e copos na "disco chaminé", ou ovos mexidos e copos a bordo...


Dia 6 - Quinta, 25 de Julho
Há cerca de 60h que navegamos adornados a bombordo. A inclinação é tal que só é possível circular no interior encostado a qualquer coisa. O corpo já não se lembra como é andar na vertical. Em consequência, e como a minha cama fica a estibordo, tive que instalar uma lona de retenção caso contrário passava o tempo todo no chão. Esta noite passei mais tempo em cima da lona (que em condições normais é vertical) do que em cima do colchão...
Quarto das 08h ás 12h com os companheiros do costume, os cadetes Fradique e Pires, "a dupla" como eles próprios se intitulam... e o que eu tenho aprendido com eles... 8h por dia ;) Os 20 anos de hoje têm outra rodagem...
Estamos a dar-lhe bem. 9 nós (com uma ajudinha do motor)
Pequeno almoço - yougurt e tosta mista
Aproveita-se que o Rui foi descansar, para por a Mezena em cima. Há que ter fé nesta vela... aliás estou decidido a demonstrar o seu potencial náutico, quanto mais não seja para concluir que realmente só serve para embelezar e adornar ainda mais o navio. 9.1 nós ;) 
A Mezena não é como o balão de spi... não se sente aquela força bruta a empurrar a embarcação, mas pelo menos fica bem para a foto e continuo a acreditar que dará alguma estabilidade adicional.
O mar não está famoso, mas o céu está limpo, aliás temos visto a pressão atmosférica a subir nos últimos dias, portanto devemos estar mesmo por baixo do famoso anti-ciclone dos Açores.
Ainda não vi o meu cachalote...
Estamos a cerca de 60 milhas de Santa Maria. Se tudo correr bem, estaremos a atracar ao final da tarde. O mergulho no Dollabarat ficará para a próxima. Com este vento e este mar, as condições também não seriam as melhores.
As pernas já pedem uma corrida. Acho que vou estranhar a terra firme :)
Aliás estava agora mesmo a recordar que a única vez que estive em Santa Maria, foi há 25 anos, no decorrer de uma aterragem de emergência de um C-130, onde eu seguia com a minha irmã, em direcção à Madeira. Tirando eu e o Rui, nenhum dos membros desta guarnição era nascido à data... É assim que percebemos que o tempo não pára...
Devo ter passado cerca de uma hora só a olhar para as velas... a tentar perceber a melhor afinação. Neste momento, o vento vai saltando, ora estamos numa bolina folgada, ora estamos num largo... e eu a tentar encontrar uma afinação intermédia... isto tem muito que se lhe diga...
O vento caiu e a ondulação diminuiu... Estamos a cerca de 35 milhas de Santa Maria... Ainda não se vê terra, mas já se sente.
Terra à vista !!! A 32 milhas de Santa Maria... a rematar um belo esparguete à bolonhesa, a visão de terra é uma forte sensação de missão cumprida.
Um grupo de golfinhos veio saudar-nos à chegada. Percebemos que estamos há muito tempo no mar quando deixamos de os filmar e ficamos só a contemplar.
Falta pouco para concluir a minha primeira travessia atlântica à vela. Depois de 5 travessias do equador, ok, não foram à vela, ( 2 em tenra idade e 3 recentes, 4 no Atlântico e uma no Pacífico ) o currículo náutico começa ficar mais composto... falta a passagem do Cabo Horn, e do Cabo da Boa Esperança, eventualmente do Estreito de Magalhães... quem sabe um dia...Mais um check na lista "to do before I die" :)
Faltam 10 milhas. Para mim. Já cheguei :)
Daqui a 3 dias começa a regata !!!







terça-feira, 2 de abril de 2013

Dancin Days

Bem sei que o tema pode não ser do agrado de muita gente, mas ao fim de tantos anos com isto entalado na garganta, sou obrigado a dissertar sobre o tema, sob o risco de, se não o fizesse, a minha consciência se revoltar e cometer um qualquer acto dito inconsciente contra a minha própria pessoa.

O tema do dia é a chamada "Ficção Nacional". Sob esta designação estão abrangidas todas as séries, novelas e similares, supostamente ficcionadas em Portugal. O "Dancin Days" para quem anda menos atento, é uma novela. Mais concretamente é uma telenovela da SIC, que não foi originalmente ficcionada em Portugal, mas sim no Brasil, e agora, numa onda de revivalismo, lembraram-se de fazer uma versão mais adaptada aos tempos modernos.

Cá em casa, as miúdas seguem o Dancin Days. Podia ser pior, eu sei. O enredo é qualquer coisa tão enrolada, tão enrolada, mas tão enrolada, que é possível perder 10 episódios seguidos e ainda assim tudo continua mais ou menos na mesma.

Enquanto elemento de agregação familiar, a novela realmente funciona. Durante aqueles minutos, as miúdas interrogam, questionam, tiram as suas conclusões, e estranhamente vão percebendo qualquer coisa sobre a natureza humana, nomeadamente os temas recorrentes das "Ficção Nacional", a inveja, o ciume, a aldrabice, o dinheiro, e os pequenos almoços com a família toda reunida à mesa com croissants e sumo de laranja natural no jarro, algo que realmente só pode pertencer ao domínio da ficção, mas enfim... Acontece que à falta do "Vitinho" ou do "Topo Gigio", o fim da novela coincide com a hora de irem para a cama sem discussões, argumentações ou birras. Neste sentido, a novela ajuda. Acabou a novela, cama !

Ora, acontece que sou muitas vezes arrastado para o sofá à hora da novela. Para todos os efeitos, é um tempo para não pensar em nada e simplesmente desfrutar da companhia, ao mesmo tempo que vou displicentemente coçando as costas de uma ou de outra, como se de uma família de orangotangos se tratasse.

Em resumo, não tenho nada contra a ficção nacional, mas o que me tira do sério é a falta de rigor! A obra até pode ser ficcionada, mas por favor, tenham algum rigor naquilo que fazem ou dizem ou tentam representar. é que ficção é uma coisa e rigor é outra.

Então o que aconteceu ontem, no episódio 208 foi isto...
Um homem teve um acidente numa avioneta e está internado no hospital.

A certa altura a suposta médica é chamada ao quarto para avaliar o doente e imediatamente verifica a posição dos eléctrodos colados no peito. Eu nem queria acreditar, ali estavam os 3 eléctrodos a 10 cm de distancia uns dos outros! Imagino que o fizeram para caber tudo no mesmo plano, mas por amor de Deus  podiam afastar mais um bocadinho, é que se retirássemos o homem e colocássemos um recém-nascido no mesmo local, os eléctrodos estavam perfeitos.

Logo a seguir, diz a suposta enfermeira: "Dra, está com 35 batimentos por minuto!" Esbocei um sorriso... só quem nunca esteve num hospital é que diria a frase desta forma... é tipo chegar à bomba de gasolina e dizer à Sra da caixa: " Minha senhora, preciso de reabastecer o depósito da minha viatura que se encontra ali parcada, e agradecia que me disponibilizasse combustível aditivado sem chumbo 95, no valor monetário de 30 euros".

Isto já estava a correr bem, quando a médica então responde: "2 mg de Lorazepam!" Ui ! um dos meus neurónios da sabedoria quinou-se logo ali, zás. Senti um arrepio na espinha. Lorazepam é nada mais nada menos que o conhecido Lorenin, uma droga que se usa para "acalmar os nervos"! Numa bradicárdia (coração a bater devagar) o homem precisava de tudo menos Lorazepam ! Sai um Lorenin para mim...

Segue para bingo, olha para o monitor e diz: "Não está a reagir, vamos usar o defibrilhador, rápido !" Aqui, eu entrei em fibrilhação !!! O monitor, mostra um gajo em ritmo sinusal com uma frequência garantidamente a cima de 35 e com Saturações de 94%... e ela prepara-se para chocar ! Eu já estava em choque ! Dito e feito, a enfermeira toca de ligar o desfibrilhador, esfrega as pás uma na outra (Oh My God) e zumba choque no homem!

Obviamente o ritmo sinusal passou a linha isoeléctrica ! Ela acaba de o matar ! Mas como as alarvidades vêm em bando, a seguir, já em linha isoeléctrica, espeta-lhe mais 100 Joules ! Ou seja, não só chocou um ritmo que não é desfibrilhável, como a seguir consegue chocar a própria ausência de ritmo (apesar de continuar com saturações de 95%). Isto para os médicos e enfermeiros é óbvio, mas para os leitores fora desta esfera eu faço uma analogia. Imaginem que num determinado episódio da novela, assistiam a uma operação STOP. Um GNR solícito, aproxima-se da viatura, bate a pala e diz: " bom dia sr condutor ! o extracto do seu crédito à habitação se faz favor !" Ao que o condutor responderia, mas eu só tenho aqui a conta do gaz! Responde o GNR, pois, isso não serve, mas se tiver a conta da água podemos extrapolar!" Percebem ??? Chama-se non sense !

A coisa estava portanto preta, e a esperta da médica resolve então mudar de estratégia... como a coisa não está a funcionar diz assim: " vamos tentar a reanimação manual ! " LOL ! Agora passamos da reanimação automática para a manual ! Toca a por as mãos no peito do rapaz e começa a empurrar...
Neste momento, os milhares de Portugueses que por esta altura já fizeram um curso de Suporte Básico de Vida estão todos dados como estúpidos... mas é neste momento que eu reparo na imagem que me deixou completamente K.O. Então não é que o homem tem a boca enfaixada !!! Se a médica não o matasse, morria asfixiado !!! e como quem não quer a coisa, ainda espetaram na testa do dito cujo uns eléctrodos de monitorização da profundidade anestésica (aquela fita branca e azul)... algo que não tem absolutamente nada a haver com o cenário ! Eh pá ! Desta vez abusaram !!!

Eu espero que alguém da "Sociedade Produtora de Televisão - SPT" tenha a oportunidade de ler isto... O pessoal até vê a novela, mas por favor... um pouco de rigor não custa nada. Não só há pessoal de saúde que vê isto, como há cada vez mais pessoas a saber um mínimo de SBV - Suporte Básico de Vida, e isto que os senhores mostram já não é só ficção nacional... é verdadeira ficção cientifica!

Não há necessidade... contratem um médico para dar uns palpites... estamos ao preço da "uva mijona" :)