segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Ensaio sobre a loucura

Em tempos tinha escrito numa pequena crónica Facebookiana, que um dia haveria de dissertar sobre o fim das relações. À minha volta, vejo muita gente a percorrer este longo caminho e desde há vários meses que ando a cozinhar esta ideia... e não me perguntem porquê, porque simplesmente não o direi, é apenas um facto que dou de barato. Sinto no entanto que, fruto de uma inspiração ocasional, acabei por ir um pouco mais longe, provavelmente porque concluí que o tema é demasiado complexo e não é fácil fugir à tentação de cair nos clichés habituais. Há coisas que não se aprendem na escola ou na faculdade, simplesmente aprendem-se com a idade.

Na produção cinematográfica e musical anglo-saxónica, deparamo-nos muitas vezes com a expressão "I love you", abarcando um conjunto de emoções que na tradução em Português oscilam entre o "gosto de ti" e o "amo-te", mas agora, à luz desta minha visão, creio que poderíamos livremente traduzir o "I love you" para um "sou louco por ti", porque no fundo, é tudo uma questão de espectro, o espectro do desejo, ou da loucura... se preferirem.

Estou portanto convencido, que existe um conjunto mais ou menos heterogéneo de sinais e sintomas que, em si, constituem um  grupo de doenças que até agora não foram devidamente diagnosticadas. Decidi chamar-lhes DED - "Doenças do Espectro do Desejo"

Reconheço que falar de desejo nos tempos que correm é demasiado perigoso, sei que me movo em terrenos pantanosos por demais pisados. Falar sobre desejo é falar sobre aquilo que toda a gente fala, escreve e canta! Provavelmente 90% das musicas que ouvimos no rádio falam de desejo... e quase todos os grandes génios da literatura já escreveram umas quantas linhas sobre o tema. Se eu não for crucificado por esta crónica, provavelmente não mais o serei...

As "Doenças do Espectro do Desejo" são características deste princípio de século XXI. São doenças do tempo dos telemóveis, do tempo das mensagens escritas e do tempo das redes sociais. Creio que o próprio Francesco Alberoni, se voltasse a escrever "Enamoramento e Amor" já o faria numa óptica diferente, aliás, ele fez, quase 30 anos depois, mas chamou-lhe "Sexo e Amor".

Estas doenças encontram as suas raízes em factores de ordem tecnológica, emocional e física. Um leitor mais atento poderá licitamente acusar-me de estar a misturar as coisas... bem, é verdade, eu misturo coisas, sou assim. As DED incluem por exemplo, a saudade, o ciume, o ciuminho (versão light), a paixão, o amor, o "adoro-te", o "quero-te", o "preciso de ti", o "dás-me pica", o "não consigo viver sem ti", o "fazes-me falta", o "não me és totalmente indiferente", entre tantas outras que seria exaustivo estar aqui a enumerar mas que facilmente conseguirão enquadrar.

O que têm todas estas doenças em comum ? Bem... elas basicamente refletem "síndromes de privação", muitas vezes fruto de relações terminadas ou mal resolvidas, ou nunca iniciadas e como qualquer síndrome de privação, a cura está no objecto do desejo, neste caso, o outro, seja ele legítimo ou ilegítimo, à luz das convenções culturais em vigor. Não há vacina para as DED, e estas raramente causam ressaca, tremores ou suores frios, as DED causam tristeza, angustia, sensação de vazio e um grau de variável de sofrimento consoante a escala aplicada. Habitualmente não matam, mas quando o fazem, dizemos que se tratam de crimes passionais.   

Como é que lidamos com este tipo de privação?
Imagino facilmente um grupo de auto-ajuda... os EA - Enamorados Anónimos. Chegávamos lá e diziamos, Olá, o meu nome é Nelson e tenho uma DED... ao que todos responderiam em uníssono, Olá Nelson ! conta-nos a tua história. Provavelmente não iria resolver nada, mas pelo menos partilhávamos a nossa miséria, e a partilha, nestes casos, pode ser um bálsamo para a alma. 

Acredito que não há uma estratégia única para lidar com isto, aliás, parece-me que homens e mulheres, ao longo do tempo, adoptaram estratégias radicalmente diferentes para "resolver" a situação. Os homens tendem a exteriorizar a questão, ou seja, partem em busca de um ou mais objectos de substituição, podem ser outras pessoas, actividades ou interesses. Uma vez que o desejo, de qualquer forma, não desaparece mesmo, o melhor a fazer é recanalizar em outra direcção. Facto é que o caminho parece ser mais ou menos sempre em frente, garantidamente penoso, certamente cheio de solavancos, mas sempre em frente. Já as mulheres, interiorizam a coisa. Focam-se no auto-domínio e no auto-controle do desejo. Procuram à força toda curar-se por dentro, livrar-se do raio do objecto através de uma purga disciplinada, metódica e sistemática. Pelo caminho tendem a agarrar-se com unhas e dentes a tudo o que lhe proporcione um mínimo de segurança e conforto emocional. As que têm Facebook, publicam muitas vezes fotografias dos seus gatos. Não me perguntem porquê, é apenas mais um facto constatado. Haverá provavelmente ainda um terceiro grupo... aqueles que sendo homens ou mulheres têm, respectivamente um "cérebro de gaja" ou um "cérebro de gajo". Este grupo é especial... e aqui as estratégias são combinadas e muito mais complexas, mistura-se o auto-dominio com a a fuga, a evicção com a substituição, tudo envolto numa certa dose de orgulho próprio e uma pitada de "vou fazer de conta que não existes".

O problema destas terapêuticas, já está mais do que identificado. O próprio Facebook, acaba de lançar duas aplicações que procuram ajudar os que por lá andam. "Killswitch" (podem seguir o link) é uma aplicação que apaga todas as referências ao outro, o tal do desejo. Promete tirar da vista tudo aquilo que não sai da cabeça ou do coração. De alguma forma, elimina todo o fluxo de mensagens subliminares de parte a parte. Acho que é para os verdadeiramente decididos, aqueles que reconhecem ter o problema, e querem mesmo, mesmo, curar-se. Quase simultaneamente, foi lançada uma outra aplicação chamada "Bang with friends". Aqui o objectivo é outro, entramos no campo da terapêutica de substituição. Identificam-se novos potenciais objectos de desejo, e quando há um match recíproco, ambos são avisados, para que possam, enfim... substituir. Estas novas tecnologias em prol da cura não param de me surpreender.

Talvez todas estas estratégias estejam condenadas ao fracasso... Talvez não haja mesmo cura... ou talvez a razão esteja simplesmente do lado do Mia Couto..."A saudade é uma tatuagem na alma. Só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.", o que então será caso para dizer, levem o que quiserem, mas acabem-me com este sofrimento.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Al-morroides

Todas as profissões, atividades e áreas do conhecimento têm os seus termos técnicos e a sua nomenclatura própria. Este léxico, que contribui para a nossa riqueza linguística é um património muitas vezes acumulado ao longo de dezenas, por vezes, centenas de anos. Acredito que não existiu maldade nem segundas intenções nem um propósito mais ou menos obscuro, quando alguém criou os termos "Tomografia de Emissão de Positrões" vulgo PET, ou "Ecocardiografia Endoscópica Trans-esofágica", mas facto é, que quem não dominar a arte dos exames complementares de diagnóstico, simplesmente não chega lá.

Face ao exposto, parece-me algo correto afirmar que, o que faz com que determinado individuo seja considerado um perito, é, nem mais nem menos, e tão somente, o domínio dos termos técnicos da sua profissão. Pode não saber ao certo o que significam, mas se conseguir pronunciar os mesmos com autoridade, confiança, e sem se engasgar, é um perito! Aos olhos dos não peritos, dito leigos, este individuo, sabe do que fala! E dito isto não consigo esquecer a cena do saudoso Vasco Santana, perante o juri do seu exame de anatomia, pronunciando de uma só vez a palavra, esternocleidomastoideu, levando ao rubro o público que assistia ao seu exame. Temos Doutor! Obviamente!

Sempre me senti incomodado, com as pessoas, ditos peritos, que ao falarem com leigos na sua área, fazem questão de utilizar os termos técnicos que dominam na perfeição sem ter o cuidado de abrir e fechar um parêntesis que inclua uma breve explicação em português corrente. Isto aplica-se claramente aos médicos, aos advogados, aos economistas, aos engenheiros, aos arquitectos, aos mecânicos e até ás costureiras! Em verdade, isto aplica-se a quase toda a gente! Porque quase toda a gente fala daquilo que sabe, assumindo o principio que quem vai ouvir claramente também domina o tema, ou não! Quando sou confrontado com esse tipo de pessoas, habitualmente faço questão de dizer: "Se não se importa, explique-me como se eu tivesse 6 anos"... e aí a coisa complica-se.

Ainda agora na minha recente experiência vélica, dei por mim completamente fora da minha zona de conforto, quando de repente, começo a ouvir, "folga o gaio !!!", "caça o amantilho !!!", "a adriça do spi está enrolada na adriça da genoa !!!", "folga a alanta e caça a escota !!!". Percebem a questão ?! Se não dominamos a arte, estamos completamente a leste.

Acontece que vivemos em Portugal, e em Portugal o povo não se acanha. A malta cá, se não sabe inventa ! Desde que a coisa soe parecido, é sempre em frente e fé em Deus. Então na área de medicina o povo é verdadeiramente soberano e se alguns mais acanhados, tentam expressar-se em português corrente, utilizando expressões como "a boca do corpo", " a verga" e "a quebradura", já outros, convictamente lançam na conversa "a argália entupiu-se" ou "tenho uma ursula no diodeno". À conta da nossa sociedade de informação, o contrário também acontece. Ainda há bem pouco tempo, perante uma doente que tinha batido com a cabeça e não apresentava sinais de gravidade, quis tranquilizar a senhora dizendo, pode ir descansada, isso que tem na cabeça é apenas "um galo"... ao que a senhora fuzilou-me com os olhos e afirmou, não é um galo não senhor doutor, é um hematoma ! Palavras para quê ?

Isto tudo a propósito de um caso recente, em que uma paciente dizia-me assim, oh doutor, o meu marido fez um "taco", mas aquilo não deu nada, depois afinal foi preciso fazer um "cataclismo cardíaco" e acabou operado a um "aneurisma da aurora". Pensei para comigo, felizmente não foi necessário fazer nenhum "clister ao pato", não por causa da "soltura" ou da "ursa no estôgamo" que essa felizmente anda controlada, mas porque as "almorroides estão em carne viva" e meter um tubo pelo "anes" nestas circunstâncias é no mínimo chato. Pensei, mas não disse. Dizer, seria revelar sinais evidentes de "leucoencefalopatia aterosclerótica subcortical microangiopática"... ou seja, um parafuso da cabeça danificado pelo uso.