sábado, 19 de abril de 2014

O dia da morte de Lual Lueth

Lual Lueth, 32 anos, morreu ontem à noite, sexta-feira santa, mas creio que não ressuscitará amanhã.
O Lual levou consigo o Gabriel Garcia Marques, e o mundo ficou mais pobre. A culpa não é do Gabriel que deixou ao mundo uma obra imensa, património da humanidade para todo o sempre, a culpa é do Lual, que deixou um filho menor, sozinho no mundo.

O Lual nem era militar, era civil. A cidade onde morava, Malakal, já mudou de mãos seis vezes nos últimos três meses. No dia 25 de Março, uma bala de Kalashnikov, custando pouco menos de 20 cêntimos, entrou-lhe pelas costas e perfurou-lhe o cólon. Nesse dia escreveu-se o seu destino.

Foi evacuado no dia seguinte para Juba, capital do Sudão do Sul, onde os cirurgiões do CICV o operaram in extremis. O caso era tão mau que pouco mais fizeram que trazer à pele o cólon perfurado, sob a forma de uma colostomia. Lual aguentou-se... estoicamente !

Aqui nao há cuidados intensivos, não há TAC nem rx, não há análises para além do valor da hemoglobina, nao há microbiologia, não há balanços hídricos, nao há sangue, não há alimentação parentérica, não há antibióticos de ultima geração, não há ventiladores ou monitores de sinais vitais, não há câmeras hiperbáricas, raramente há água e por vezes nem electricidade... Durante a noite praticamente nao há enfermagem, e todos os medicamentos injectáveis tentamos administrar em tomas únicas ou pelo menos duas vezes ao dia por forma a coincidir com o nosso horário de entrada e saída do hospital. Aqui nao há nada, para além de muita dedicação, e espirito de sacrifício.

Operei o Lual pela primeira vez há cerca de duas semanas, no primeiro dia que entrei no hospital. Tinha desenvolvido uma fasceite necrozante. Uma "bactéria carnívora" espalhava-se agora pelo lado direito do seu corpo "comendo" tudo o que encontrava pelo caminho. Apesar de todos os esforços a infecção espalhava-se de dia para dia até que já perto do fim, em alguma zonas, do abdômen, era possível ver as ansas intestinais, porque já nao havia parede. Todas as costelas do lado direito estavam descascadas até ao osso. Entre o joelho e a axila, ja nao havia pele, e o pouco músculo que restava era consumido de dia para dia até chegar ao osso. Operei-o oito vezes em duas semanas. Desfiz a colostomia, tirei-lhe metade do cólon, anastomosei o restante. Ao longo dos dias, consegui encerrar o abdômen e restabelecer o transito intestinal. Fui retirando todos os tecidos mortos, limpando, desbridando, lavando... Nos dias de bloco o cheiro era quase insuportável.

O Lual saia das cirurgias quase morto... Porque já entrava quase morto. A primeira vez que o operei tinha 3,7 de hemoglobina. Fizemos uma vaquinha e entre os membros da equipa fomos dando sangue à vez. Já ia com 8,2 e eu era o próximo. 

Todos os dias de manhã, era o primeiro doente que eu ia ver. Tenho a sua história toda documentada fotograficamentente, mesmo nos dias em que nao o operava. Ele ficava no nosso recobro, uma pequena enfermaria de cinco camas dentro do bloco operatório. Deitado aos pés da cama, o filho enxotava as moscas e tratava do pai quando não havia mais ninguém para o fazer. Um dia as enfermeiras resolveram mudá-lo de sítio e eu quase tive um desgosto ao ver a cama vazia...

Nos dias seguintes ás cirurgias o Lual despertava para a vida. Um dia abriu os olhos e começou a falar em inglês. Nós brincávamos a dizer que tinha sido por receber sangue de uma neozelandesa, agora iria ter um sotaque Kiwi. Nenhum órgão falhou isoladamente ao longo destas quatro semanas, mas desde há uns dias para cá, subjectivamente, sabiamos que estava pior. Os nossos melhores antibióticos nao são os melhores antibióticos... e numa das ultimas induções anestésicas fez uma pequena aspiração... que três dias depois se transformou numa pneumonia.

Operei-o ontem pela ultima vez e hoje, vinte e quatro dias depois de ter sido baleado, quando o fui visitar, à espera da tradicional melhora ele já nao estava. Nem o filho... 
e ninguém trocou as camas. Estive uns segundos ali a olhar para o local onde era suposto ele estar. Os olhos marejaram. Ele esteve sempre morto, desde o principio, eu é que não sabia.

Virei as costas quando um enfermeiro local me tocou no ombro. Doutor, preciso que venha à urgência selecionar os doentes que quer operar... recebemos trinta baleados, e vêm mais catorze a caminho... Hoje só conseguimos operar oito...




sábado, 25 de janeiro de 2014

Tempos modernos, not !

Lembro-me como se fosse ontem... mas foi em 1987 que abriu o primeiro hipermercado na região de Lisboa, o Continente da Amadora.

Durante os primeiros meses após a inauguração, uma ida ao Continente era programa para um dia inteiro. Havia filas para entrar, filas para circular no interior e filas para pagar e filas para sair. Era como se dia após dia, Lisboa se encaminhasse em peso para o Continente num ciclo contínuo, sem tréguas, sem momentos de baixo movimento. Como se de um espectáculo se tratasse, ninguém ia sozinho ao Continente, levava-se toda a família, não fossem estes perder a oportunidade de usufruir de tão singular passeio.

Levei mais de um ano até ganhar a necessária coragem para tamanha aventura. O timming fora escolhido na perfeição, poucos dias depois da inauguração do segundo grande hipermercado da região, o Jumbo de Alfragide, situado a escassas centenas de metros do primeiro.

Na minha cabeça, se toda a população de Lisboa estava no Continente, com a inauguração do Jumbo, esta massa humana haveria de dividir-se por dois, tornando a minha ida ás compras um processo muito menos doloroso. Enganei-me. O Continente continuava cheio, e o Jumbo estava a abarrotar. Ainda hoje ando a digerir este fenómeno... de onde surgiu tanta gente ?!

Passaram-se vários anos, e entretanto comecei a fazer urgências nos hospitais. Na época, havia poucos serviços de urgência na Grande Lisboa, e estes estavam invariavelmente cheios. Não havia triagem de Manchester, mas havia o olho do maqueiro que ao ver um doente com mau ar na sala de espera, tratava de avisar os médicos que aquele devia ser atendido assim que possível. Era uma triagem com muitos poucos falsos positivos e os maqueiros deste pais salvaram muita gente in extremis.

À medida que novos hospitais foram abrindo, tornava-se obvio que quanto mais nao fosse pela simples divisão administrativa de base geográfica, o volume de doentes haveria de diminuir. Enganei-me novamente. Na verdade, a abertura de um hospital era imediatamente seguida por uma ligeira diminuição do número de doentes que agora passavam a pertencer a uma outra área, mas em poucas semanas os números voltavam ao normal ou até, muito frequentemente, de forma quase paradoxal, ultrapassavam os números anteriores. Lembrei-me do Continente. As urgências, afinal, eram como os hipermercados. Eram, não... São!

Abriram-se as portas, facilitou-se o acesso, democratizou-se a assistência... e o povo abusou !

Mas já nada me espanta. Num pais onde os cozinheiros passaram a ser Chefs, os cabeleireiros, Hair Stylist, os porteiros, seguranças, e os contínuos agora respondem sob a designação de auxiliares de acção educativa, algo haveria de correr mal...

Os Hospitais responderam à letra. Os bacharéis de enfermagem passaram a licenciados, os licenciados em medicina agora são mestres e os maqueiros tornaram-se auxiliares de acção médica. Já nao temos doentes, temos utentes, e para os utentes, a urgência é uma espécie de loja de conveniência aberta 24h, ali ao virar da esquina.

Longe vão os tempos onde os galos na cabeça tratavam-se com gelo, em casa, e as pequenas feridas levavam tintura de iodo e um penso rápido, também em casa. Hoje não existem galos, existem hematomas epicranianos e os doentes querem fazer um TAC antes de fazer gelo. Hoje é frequente que um doente, após uma cabeçada, se apresente na urgência com uma simples dor de cabeça, e quando questionado sobre o que tomou para a dor de cabeça, a resposta é invariavelmente, nada. Qualquer esfoladela ou nódoa negra dá direito a rx, e os pensos são feitos no Centro de Saúde, não vá o diabo tecê-las. Mas até isso já não acho estranho. Antigamente as bebedeiras tratavam-se na esquadra da polícia... hoje é na maca do Serviço de Urgência. O mesmo se passa com a obstipação. Nunca tratei tanta obstipação na minha vida como nos últimos anos. Sim é verdade, a obstipação é para um número crescente de utentes, uma patologia de urgência e eu tornei-me um verdadeiro desentupidor de canos... Após 14 anos de formação específica e diferenciada, dou por mim a prescrever laxantes como apenas um especialista o saberia fazer. Pai, perdoa-me, a cirurgia também já nao é o que era...

Mas foi apenas nesta última noite que me senti verdadeiramente presenteado com a cereja no topo do bolo. Tinha acabado de cair no cadeirão por volta das 3.30 da madrugada. 10 minutos depois, uma urgência. Um homem, de 45 anos, com dor abdominal. Perguntei-lhe à quanto tempo tinha a dor... Respondeu-me prontamente, à meia-hora !!!! À meia hora e já está no hospital ?!?!? A minha educação impediu-me de partir para a agressão... Então e nesta meia-hora, a dor, melhorou, piorou ou está na mesma ? Por acaso melhorou... depois que deitei uns gases... Gases ???? Ó meu amigo, gases era antigamente. O senhor acabou de expelir uma combinação altamente tóxica de hidrogénio, metano e dióxido de carbono... e sabe que mais...ainda bem que o fez no Hospital !

Atirem-me areia para os olhos... ou parem este mundo... eu quero sair.



quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Factor X

Há uma expressão no Colégio Militar que define muito bem o sentimento que hoje me assiste. "A carneirada !"

Sei que não sou o típico adepto de futebol. Sou benfiquista nao praticante e sei o nome de mais jogadores do plantel do Néné, do Chalana, do Bento e do Humberto Coelho do que dos actuais titulares. Naquele tempo o Benfica tinha um ou dois estrangeiros, e o resto da equipa era o esqueleto da seleção nacional. Entretanto a equipa descaracterizou-se, passou a ser o esqueleto da seleção do Uruguai, do Paraguai, da Argentina, do Brasil, do Chile... E eu desliguei. 

O Eusébio já nao é do meu tempo e os da minha geração provavelmente nao se lembram de alguma vez o ter visto jogar, mesmo porque em meados dos anos 70 o Eusébio jogava no Beira Mar e acabou a jogar no União de Tomar que à data, era um clube da segunda divisão.

Reconheço no entanto, que do ponto de vista histórico, o Eusébio da mesma forma que a Amália era um símbolo vivo do estado novo. Portugal definia-se em três palavras, fado, futebol e Fátima e num tempo onde os computadores ocupavam salas inteiras, as comunicações eram escassas, a televisão começava ás 19 horas, e os jornais eram a preto e branco, o Eusébio era a figura nacional mais reconhecida além fronteiras.

Acontece que, por este andar, dentro em pouco, só Fatima nao estará representada no Panteão Nacional, e dai... talvez nos próximos tempos se lembrem da Irmã Lúcia, e encerra-se esta santíssima trindade ali para os lados de Santa Ingrácia.

Hoje idolatra-se tudo o que aparece na televisão mais do que uma vez. Idolatram-se aspirantes a cantores, aspirantes a cozinheiros, aspirantes a actores e personagens de reality shows sem ponta por onde se lhes pegue. Tarólogas, astrólogas, relações públicas, estilistas, jogadores de futebol, gente que aparece nas revistas cor de rosa e nas festas de verão... todos têm o tal factor x que gera a inveja alheia e como tal estão a meio caminho de serem idolatrados. A comunicação social tem culpa. Estas estrelas tipo cadente desviam a atenção dos verdadeiros astros.

Eu não concordo com a ida do Eusébio para o Panteao Nacional. Crucifiquem-me. Chamem-me preconceituoso. O Panteão nao pode ser o cemitério dos famosos. Nao deve. Nao era essa a ideia...Mas a carneirada já decidiu...

Inverteram-se os valores. A fama passou a ser um critério.

Antigamente, era a obra ! A postura ! Os actos de bravura ! Hoje, é o factor x.
Não vejo no Panteão Nacional o Marques de Pombal, o Fontes Pereira de Melo, os nossos prêmios Nobel, o Egas Moniz e o José Saramago, não vejo o Aristides de Sousa Mendes, não vejo o Almirante Gago Coutinho nem o Sacadura Cabral, a Beatriz Ângelo, e tantos outros com obra e feitos que marcaram a história deste pais, que fizeram de Portugal um lugar melhor ou mais culto, reconhecido pela ciência, pela inovação ou pelo humanismo.

Em breve teremos no Panteão Nacional nao só o Eusébio, que marcou muitos golos e levou Portugal ao terceiro, repito, terceiro lugar no campeonato do mundo de futebol, que é um dos melhores jogadores de sempre, sem no entanto ser o melhor, mas teremos também o Cristiano Ronaldo porque vai vaporizar os recordes do Eusébio e já é o português mais conhecido de sempre nos quatro cantos do planeta, teremos a Mariza e a Ana Moura que levam o fado onde este nunca tinha chegado, teremos com certeza o Mourinho, o melhor treinador do universo, Salgueiro Maia e os capitães de Abril, a Maria João Pires, o La Féria o Mário Soares e por aí adiante... a lista cresce todos os dias.

Reconheço que o Eusébio, durante 15 anos da sua vida, foi um grande futebolista, mas nao me reconheço na carneirada. Fica aqui a minha sugestão... Ponham beliches no Panteão Nacional, porque em breve, nao haverá lugar para todas as estrelas, sejam elas cadentes ou incandescentes.