terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mercenary Man - Day 45

Quando estamos fora, o tempo conta-se de maneira diferente.
As rotinas, que no princípio estranhamos, agora entranharam-se. Há novos amigos, novas experiências, novos lugares, novas recordações e não menos importante, abrem-se novas portas. Há um ritmo diferente em tudo o que fazemos... Na própria forma como vivemos.

Entre Sudão do Sul e Kosovo, estou praticamente há três meses fora de casa. Longe da família, dos amigos e dos colegas de sempre. Há três meses que não conduzo e no entanto, provavelmente nunca tive uma rotina tão boa de exercício como agora tenho e nunca tive uma alimentação tão correctamente paleolítica. De uma forma aparentemente paradoxal, apesar do contexto das missões, os níveis de stress caíram para valores de mínimos históricos. Há qualquer coisa neste mundo da ajuda humanitária que nos torna diferentes, e começo a perceber o que é...

Saltei do mais jovem país africano, para o mais jovem pais europeu, e há quase três meses que não sinto o cheiro da maresia ou o sabor dos beijos das minhas mulheres. No campo profissional percebi que para alguns paga-se caro a aventura humanitária, mas para lá dos 40 percebemos que tudo na vida tem um preço. O que fazemos paga-se da mesma forma que tudo aquilo que deixamos de fazer.

Quando estamos em missão... encontramos-nos com nós mesmos ! Sem os tradicionais suportes da nossa estrutura social, estamos fundamentalmente sozinhos. Pensamos muito mais, planeamos, recordamos, meditamos, e quase sempre sem querer pomos toda a nossa vida sobre a mesa, tudo, ali, como se de um qualquer festim se tratasse. Com uma atenção redobrada analisamos cada gesto, cada palavra dita ou não dita, percebendo muitas vezes pela primeira vez a posição e a importância relativa de cada coisa. As certezas tornam-se mais fortes, as dúvidas mais ligeiras, e a nossa visão do mundo ganha outras cores. Perceber o porquê do conflito tribal no Sudão ou a razão de ser da segunda républica Albanesa nos Balcãs, pode não parecer muito importante à primeira vista, mas na realidade, é o mais claro espelho daquilo que somos enquanto humanidade.

Um dia, quando forem mais velhas, espero que as minhas filhas percebam o porquê da ausência do pai durante alguns meses e porquê troquei os seus sorrisos pelos sorrisos de crianças anónimas no meio da selva, uma refeição em família por uma ração de combate à volta da fogueira, porquê dormi em tendas em vez do conforto da nossa casa e porquê troquei a água de colónia pelo repelente para mosquitos e o banho quente pela água do rio, e porquê, tantas, tantas vezes, abdiquei do certo pelo incerto correndo riscos aparentemente desnecessários... Na vida, temos que ser generosos e humildes, tanto quanto possível neutrais, e temos que ser tolerantes para com as diferenças, saber descer ao nível dos que precisam de nós e olhar nos olhos... Elas ainda nao sabem, mas o tempo passa a voar e o tempo para fazermos o que gostamos, para darmos o que de melhor há em nós... inevitavelmente esgota-se. É uma das poucas certezas da vida. 

A poucos dias de regressar a casa, deixo um Kosovo à beira de eleições que podem ou nao correr bem e deixo uma pequena comunidade portuguesa tão especial e acolhedora como são todas as nossas comunidades espalhadas pelo mundo, mas faço-o com um sorriso nos lábios. Levo na bagagem uma ideia que nao me sai da cabeça... há muitas outras crises para além da nossa crise, há muita gente a sofrer para além daquilo que se vê no telejornal, e há um mundo inteiro para lá do nosso rectângulo à beira mar plantado. Agora é tempo de regressar. Quem decide abraçar esta vida sabe que nem sempre ganhamos todas as batalhas, mas felizmente, ganhamos muitas guerras. As nossas ações serão sempre uma gota de água no oceano, mas o oceano é isso mesmo...