sábado, 25 de janeiro de 2014

Tempos modernos, not !

Lembro-me como se fosse ontem... mas foi em 1987 que abriu o primeiro hipermercado na região de Lisboa, o Continente da Amadora.

Durante os primeiros meses após a inauguração, uma ida ao Continente era programa para um dia inteiro. Havia filas para entrar, filas para circular no interior e filas para pagar e filas para sair. Era como se dia após dia, Lisboa se encaminhasse em peso para o Continente num ciclo contínuo, sem tréguas, sem momentos de baixo movimento. Como se de um espectáculo se tratasse, ninguém ia sozinho ao Continente, levava-se toda a família, não fossem estes perder a oportunidade de usufruir de tão singular passeio.

Levei mais de um ano até ganhar a necessária coragem para tamanha aventura. O timming fora escolhido na perfeição, poucos dias depois da inauguração do segundo grande hipermercado da região, o Jumbo de Alfragide, situado a escassas centenas de metros do primeiro.

Na minha cabeça, se toda a população de Lisboa estava no Continente, com a inauguração do Jumbo, esta massa humana haveria de dividir-se por dois, tornando a minha ida ás compras um processo muito menos doloroso. Enganei-me. O Continente continuava cheio, e o Jumbo estava a abarrotar. Ainda hoje ando a digerir este fenómeno... de onde surgiu tanta gente ?!

Passaram-se vários anos, e entretanto comecei a fazer urgências nos hospitais. Na época, havia poucos serviços de urgência na Grande Lisboa, e estes estavam invariavelmente cheios. Não havia triagem de Manchester, mas havia o olho do maqueiro que ao ver um doente com mau ar na sala de espera, tratava de avisar os médicos que aquele devia ser atendido assim que possível. Era uma triagem com muitos poucos falsos positivos e os maqueiros deste pais salvaram muita gente in extremis.

À medida que novos hospitais foram abrindo, tornava-se obvio que quanto mais nao fosse pela simples divisão administrativa de base geográfica, o volume de doentes haveria de diminuir. Enganei-me novamente. Na verdade, a abertura de um hospital era imediatamente seguida por uma ligeira diminuição do número de doentes que agora passavam a pertencer a uma outra área, mas em poucas semanas os números voltavam ao normal ou até, muito frequentemente, de forma quase paradoxal, ultrapassavam os números anteriores. Lembrei-me do Continente. As urgências, afinal, eram como os hipermercados. Eram, não... São!

Abriram-se as portas, facilitou-se o acesso, democratizou-se a assistência... e o povo abusou !

Mas já nada me espanta. Num pais onde os cozinheiros passaram a ser Chefs, os cabeleireiros, Hair Stylist, os porteiros, seguranças, e os contínuos agora respondem sob a designação de auxiliares de acção educativa, algo haveria de correr mal...

Os Hospitais responderam à letra. Os bacharéis de enfermagem passaram a licenciados, os licenciados em medicina agora são mestres e os maqueiros tornaram-se auxiliares de acção médica. Já nao temos doentes, temos utentes, e para os utentes, a urgência é uma espécie de loja de conveniência aberta 24h, ali ao virar da esquina.

Longe vão os tempos onde os galos na cabeça tratavam-se com gelo, em casa, e as pequenas feridas levavam tintura de iodo e um penso rápido, também em casa. Hoje não existem galos, existem hematomas epicranianos e os doentes querem fazer um TAC antes de fazer gelo. Hoje é frequente que um doente, após uma cabeçada, se apresente na urgência com uma simples dor de cabeça, e quando questionado sobre o que tomou para a dor de cabeça, a resposta é invariavelmente, nada. Qualquer esfoladela ou nódoa negra dá direito a rx, e os pensos são feitos no Centro de Saúde, não vá o diabo tecê-las. Mas até isso já não acho estranho. Antigamente as bebedeiras tratavam-se na esquadra da polícia... hoje é na maca do Serviço de Urgência. O mesmo se passa com a obstipação. Nunca tratei tanta obstipação na minha vida como nos últimos anos. Sim é verdade, a obstipação é para um número crescente de utentes, uma patologia de urgência e eu tornei-me um verdadeiro desentupidor de canos... Após 14 anos de formação específica e diferenciada, dou por mim a prescrever laxantes como apenas um especialista o saberia fazer. Pai, perdoa-me, a cirurgia também já nao é o que era...

Mas foi apenas nesta última noite que me senti verdadeiramente presenteado com a cereja no topo do bolo. Tinha acabado de cair no cadeirão por volta das 3.30 da madrugada. 10 minutos depois, uma urgência. Um homem, de 45 anos, com dor abdominal. Perguntei-lhe à quanto tempo tinha a dor... Respondeu-me prontamente, à meia-hora !!!! À meia hora e já está no hospital ?!?!? A minha educação impediu-me de partir para a agressão... Então e nesta meia-hora, a dor, melhorou, piorou ou está na mesma ? Por acaso melhorou... depois que deitei uns gases... Gases ???? Ó meu amigo, gases era antigamente. O senhor acabou de expelir uma combinação altamente tóxica de hidrogénio, metano e dióxido de carbono... e sabe que mais...ainda bem que o fez no Hospital !

Atirem-me areia para os olhos... ou parem este mundo... eu quero sair.



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