sexta-feira, 22 de março de 2013

War Surgery

Aqui estou eu em Geneve. Na rua, vejo inúmeras mulheres bem vestidas e produzidas a conduzir carros topo de gama, as montras têm sapatos de 600 euros, vestidos de 10.000 e relógios de 150.000... Geneve deve ser um sítio fantástico para viver.

Não vim viver para Geneve, na verdade vim para aprender coisas novas. OK, talvez não completamente novas, mas pronunciadas pela boca de alguns dos meus heróis... os cirurgiões, anestesistas e enfermeiros do CICR (Comité Internacional da Cruz Vermelha)... e hoje tive a oportunidade de almoçar na sala onde estão expostos nada mais nada menos do que quatro Prémios Nobel da Paz... assim como quem não quer a coisa, pendurados numa parede atrás da mesa onde me sentei.

Somos 34, cirurgiões, anestesistas e enfermeiros, de varias nacionalidades, noruegueses, japoneses, neozelandeses, holandeses, colombianos, mexicanos, finlandeses, italianos, gregos... de tudo um pouco e com uma doença comum. A maioria já sabe que está doente, outros estão ainda a descobrir. As nossas conversas de intervalo comparam experiências na desgraça, Indonésia, Haiti, Líbano, Paquistão, Sudão, Chade, Somália... Os olhos brilham, contam-se historias do terreno, das vidas salvas, das vidas que não se salvaram, dos medos, dos receios, dos riscos do trabalho em locais onde ninguém com um mínimo de inteligência pensaria incluir no seu curriculum de viagens. Todos sem excepção, já fizeram, ou querem fazer, cirurgia de guerra !

Há homens, mulheres, gente solteira, casada, com filhos, sem filhos, com família, sem família... Não são bonitos nem feios, há gente com ar selvagem, com ar formal, com tattoos, com mochilas e com pastas...conheci um holandês que tem o seu veleiro em Lagos, e já combinámos uma viagem até Lisboa, conheci um surfista inglês que adora a Ericeira, uma neozelandesa que esteve um ano em Timor, uma dinamarquesa que regressou há três dias da Síria... Tentei traçar o perfil e não consigo, acho que a idade é relevante, quase tudo a cima dos 40... dos 50... Mas não têm um andar esquisito, um olhar esquisito, ou um qualquer tique que os identifique se nos cruzarmos na rua... parecem pessoas normais, mas estão aqui.

Será que, com a idade e com a morte de alguns neurónios inibidores, começamos a revelar a nossa verdadeira essência ? Será um processo infeccioso, por contágio directo, sempre que falamos com algum destes seres a quem brilham os olhos ? Ou será que primeiro, temos que viver alguns anos, antes de descobrir o que nos move, o que nos faz querer ser cada vez melhores, o nosso destino ?

Estou perfeitamente (e assustadoramente) integrado no meio de uma tribo nómada que não se reconhece como tal, gente que vive em locais confortáveis, países civilizados, com acesso a tudo ou quase tudo, e no entanto, por uma qualquer razão que um dia seguramente vou descobrir, estão dispostos a trocar o conforto do seu lar, a sua familia e os seus amigos, o seu trabalho, por três meses em condiçōes humanamente difíceis, pondo em risco a sua vida, a sua integridade física, a sua sanidade mental... Será um teste à nossa capacidade enquanto seres humanos ? Uma penitência, pela vida relativamente folgada que levamos ? Haverá um gene missionário ? Ou será simples loucura, no seu estado mais refinado ? O que leva um cirurgião a querer operar sem canivete eléctrico ? Sem stapplers ? O que leva um anestesista a querer anestesiar sem oxigénio ? Quase sem monitorização ? Sem sangue ? Será a necessidade de perceber o limite ? De ultrapassar o limite ? O eterno descontentamento ? Ou a busca pelas respostas ?

Ao longo do dia fui vendo as apresentações de quem esteve no terreno, as imagens de cirurgias ao ar livre, à sombra de uma árvore, em palhotas, em hospitais sem água corrente, sem electricidade, os sorrisos de quem recebeu ajuda... as minhas próprias memórias mareavam-me os olhos, vi aquelas crianças e pensei nas minhas filhas... e eu ainda não fiz cirurgia de guerra...

Será que temos uma missão nesta vida ? Será possível que a realização pessoal e profissional de alguém, na posse das suas faculdades mentais, inclua o envolvimento activo em cenários de guerra, em cenários de catástrofe ? Será por isso que no fim de cada apresentação estamos constantemente a ouvir "if you still want to work with us..."

Estou cheio de duvidas... e cheio de certezas!

1 comentário:

  1. Como sempre somos levados à procura do fim da história, sem nunca querer passar por cima de nenhum dia. Fantástico, Nelson. Procura o teu gene missionário! Abraço.

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