quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Dream Job

Algures no passado escrevi por aqui que mais cedo ou mais tarde, este blogue ia parecer morto... qual assistolia premeditada pelas circunstancias da vida. Assim foi. Faço portanto hoje o papel de Deus ou Médico (consoante a preferência do eventual leitor, se ainda os houver) e eis que ressuscitamos o dito cujo, sabendo porém que nada é eterno, a não ser o amor, a estupidez humana... e talvez a morte.
Não estou ainda preparado para falar dos últimos três anos e meio da minha vida, e talvez não seja este o lugar para o fazer. Falarei portanto sobre os últimos cinco meses, e como após uma overdose de cirurgia de guerra no Congo, dei por mim a sentir que era altura de abraçar um outro "dream job". Digo outro, porque na verdade já tinha um. O inconformismo, a busca constante pelo próximo nível, a dúvida persistente e o desafio de perceber até onde somos capazes de ir são o maior inimigo do homem de família.

Abremos (?) então um sub-capítulo denominado "As coisas inúteis que eu aprendi sobre o mundo e sobre mim próprio, incluindo o facto de me começar a faltar vocabulário em português"

Aqui vai. Pagam-me em dólares, transferem-me em francos suiços e levanto em euros. Tenho os bolsos cheios de moedas que já não sei de onde vêm. De vez em quando esvazio tudo para um saco para um dia fazer qualquer coisa artística com elas. As notas, que habitualmente também não valem quase nada, vou guardando para uma próxima viagem mas depois consistentemente esqueço-me de as levar e acho que vou acabar por fazer um quadro. Tenho dois telemóveis com três cartões SIM, de três países diferentes.
Não tenho casa. Passei a viver em hotéis. Confesso que era um sonho de jovem adulto inconsciente. Os quartos e as camas de hotéis sempre me fascinaram. As toalhas imaculadas os lençóis brancos, os colchões fofinhos, as almofadas, os frasquinhos do shampoo e os sabonetes... mas hoje quando me perguntam onde moro não sei responder. Quando me perguntam onde passo mais tempo, também não sei responder. Quando em desespero de causa desferem a questão fatal, onde estão as tuas coisas ? respondo que algumas estão na garagem dos meus pais, e as outras andam comigo a passear pelo mundo em duas malas. Sou um nómada dos tempos modernos, finalmente e literalmente um homem de mochila ás costas como diz a Marta.

Nem tudo são rosas. Descobri uma série de preocupações e irritações. É preciso planear a lavagem da roupa, porque a mesma tem que estar lavada e entregue antes do check-out, porque as malas são pequenas e logo a autonomia higiénica não ultrapassa os dez dias. Em alguns hotéis a ausência de tomadas junto à cama é desesperante. O telemóvel fica a carregar longe, e a tentativa de fazer snooze obriga-me a levantar o que logo à partida inutiliza esta maravilhosa função inventada para quem como eu aprecia o prazer de não se levantar nos primeiros minutos depois do toque do despertador. É paradoxal levantar-se para fazer snooze. Adicionalmente irrita-me acordar, e antes de abrir os olhos não saber onde estou. Logo eu que começo devagar de manhã... desata-me o cérebro a carburar intensamente para perceber em que país, em que hotel e em que dia estamos. Já nem vou referir o facto de que no médio oriente o fim de semana é à sexta e ao sábado, e o domingo é o primeiro dia de trabalho... algo que até hoje não consigo processar do ponto de vista das emoções mais primarias. Comecei a comer coisas estranhas ao pequeno almoço, tipo salada, arroz, sushi ou legumes. O porco e os derivados desapareceram da dieta. Em vez disso há humus, falafel, pepinos e azeitonas. Os sumos do pequeno almoço dão-me refluxo gastro-esofágico. Voar acentua o refluxo. Voo tanto que ja ultrapassei o limite do Start Alliance Gold Super Elite VIP Exclusivo Hiper Mega Especial... portanto evito os sumos mas tenho que voar com o omeprazol... e uma pequena farmácia. As aventuras gastronómicas já são relativamente bem toleradas, devo estar imune a quase tudo, mas pago um preço alto pelas mazelas musculares da classe económica.

Apesar de haver um certo equilíbrio entre o numero de homens e mulheres no mundo, quando voo, habitualmente tenho um homem ao lado. Há uma certa ordem estatística que me esforço inutilmente por tentar compreender, mas é assim. Voo quase sempre à janela na parte de trás do avião. A minha lógica interna diz que terei mais possibilidades de sobreviver em caso de queda... seria mais uma história para contar. Entretanto percebi que já não consigo ler sem óculos no avião. Não ha distancia suficiente entre as duas cadeiras para afastar a revista ou o jornal ao ponto de se tornar legível. Já tenho óculos espalhados em todo o lado. O telemóvel já tem as letras no máximo. Talvez seja da falta de vista, mas claramente a beleza e a forma física das assistentes de bordo deixou de ser um critério de seleção nas companhias aéreas. De todas as companhias que já voei, as assistentes mais feias do mundo são da Air Niugini... não há como não reparar... mas felizmente não tenho voado muito por ali. A beleza ainda é um critério em algumas companhias ricas do golfo, mas no oriente médio, onde me encontro, a maioria das assistente são homens com ar de poucos amigos. A turbulência não me afeta e a comida já a vejo como caseira. Comprei uns phones XPTO com cancelamento (?) de ruído e é como se estivesse em casa. O meu rabo já tem o formato de uma cadeira de classe económica e a bexiga é mega porque gosto de ir à janela e não gosto de incomodar o(s) homem(s) do lado quando estão a dormir. Estou adaptado.

Conheço os procedimentos de segurança de dezenas de aeroportos. O meu cinto não apita. Quase ninguém detecta os líquidos no necessaire. Sim, estão num saquinho de plástico, mas já não tiro para fora. Tem líquidos? Não. Ocasionalmente, habitualmente em Lisboa vá-se lá saber porquê, descobrem-me o necessaire. Digo que estão no saquinho da praxe, não sabia que era preciso tirar. Contas feitas a todos os voos, quase nunca tiro, excepto em Lisboa... têm uma fixação qualquer com os líquidos. No Cairo obrigam-me a descalçar umas duas vezes pelo menos entre a entrada do aeroporto e a porta de embarque. Dá-lhes prazer ver as pessoas descalças. Já não uso meias rotas. Fazem isso com toda a gente, mas depois são capazes de meter tudo no RX e não está ninguém a olhar para o ecran. Numa coisa são bons. Caçar isqueiros. Ja tentei passar mais de uma dezena de vezes com eles de todas as formas e feitios mais ou menos camuflados. Não adianta. Estão focados naquilo. E são bons na deteção de isqueiros. Ficam irritados, quase que obcecados. É uma espécie de ordem fundamentalista que se dedica à caça dos isqueiros, mas assim que se passa a segurança vira-se à esquerda e tem uma sala de fumadores onde toda a gente acende cigarros com isqueiros. Passei a levar fósforos e já não me irrito. Em Israel, onde a cultura de segurança é apertada, passo pela segurança como se fosse invisível, ninguém me liga. Não percebo.

No mesmo dia sou capaz de trabalhar em ingles, francês e espanhol. O meu árabe não ultrapassa a linha dos cumprimentos a que a etiqueta obriga, mas ninguém se incomoda com isso e ficam surpreendidos por eu conseguir ler e escrever em árabe sem saber o que estou a lêr ou escrever. Sou uma espécie de contra-analfabeto. Não uso taxis no médio oriente é roubo certo, quase como em Portugal. Usava Uber mas os satélites para a geo-localização da Uber ficaram marados com as areias do deserto e o desencontro com os motoristas passou a ser a regra. Mudei para o Careem, o Uber dos árabes, com satélites adaptados ás agruras da vida por aquelas paragens. No Cairo não há passadeiras nem semáforos. Atravessar uma rua a pé é um ato de fé, muita fé. Ensinaram-me o truque de atravessar ao lado de sotavento de um qualquer personagem local, de preferencia obeso e com ar de quem sabe o que esta a fazer. Tentei algumas vezes mas é arriscado porque os carros não abrandam nem se desviam. Vou para o trabalho com o Careem... são 5 minutos a ouvir passagens do Corão ou música tradicional. Entenda-se por tradicional qualquer musica que inclua a expressão "Habibi, habibi". Deixei de correr na rua. Aprendi a apreciar as passadeiras rolantes dos ginásios. Correr na rua no médio oriente é meio caminho andado para ser abatido a tiro ou deixar toda a gente em pânico. Conheço sítios fantásticos para comer, petiscar ou beber em Ramallah, Gaza, Oman, Beirute, Aman, Islamabad ou Kabul... mas o que me dá saudades é o entrecosto grelhado o cozido e o bitoque.

Eu sei... é um modelo de vida esquisito, a familia não percebe, os amigos não compreendem, e eu próprio questiono... mas o que seria a vida sem um dream job ?





2 comentários:

  1. A definição de "esquisito" é muito subjetiva. :)

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  2. Venho muitas vezes aqui... Por aqui o sonho é algo possível de realizar, asas sempre abertas, sem medo! A vida é isso mesmo um arriscar constante, um correr o mundo em busca de algo que nos preencha... Os outros, alguns não vão compreender! e isso importa quando se é feliz?!

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